Como a MPB enxergou a Ditadura
Você já deve ter ouvido falar da força que a expressão artística tinha na época da ditadura, mesmo com a repressão. Esta movia muitos artistas a usar, ainda mais, a criatividade para tratar de assuntos específicos usando figuras de linguagem e outros meios. Quer saber um pouquinho mais sobre os movimentos, artistas e letras de músicas? É só acessar!
Você, muito provavelmente, já deve ter escutado falar ou estudado um pouco sobre a época da Ditadura Militar no Brasil, momento em que as políticas foram dominadas pelos militares. Tudo começou com o golpe deflagrado em abril de 1964, quando as forças armadas, apoiadas pelos Estados Unidos da América, destituíram o então presidente João Goulart (ou Jango) e assumiram o poder. A partir de então, até 1984, estava instaurada a Ditadura Militar no Brasil.
O período conturbado ficou marcado na História do país pela tomada de atos inconstitucionais, como a censura, ausência de democracia, opressão política, revogação de direitos, e repressão aos que tinham ideias contrárias ao regime. São muitas as características e fatos históricos e é preciso estudar mais a fundo o tema, já que sempre está presente nas principais provas de vestibulares, porém, neste artigo, focaremos em contar como a MPB (movimento dentro da música popular brasileira) enxergou a Ditadura. Já que, pode-se dizer, foi um dos ciclos de maior expressão artística, devido às represálias políticas. Confira a seguir!
O surgimento da MPB
É importante falarmos da diferença, defendida por alguns historiadores, entre a música popular brasileira e a MPB. Essa última seria o que começou a ser produzido durante a Ditadura, mais precisamente em 1965, e se diferencia da primeira por ser a mistura de um outro movimento musical, a Bossa Nova, sucesso nas décadas anteriores, com o movimento folclórico dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Estes, defendiam, respectivamente, a musicalidade sofisticada e o respeito à música “de raiz” brasileira. A partir do golpe, os dois movimentos instituíram “MPB” como um emblema de luta e resistência, por meio da arte, contra o regime. Depois, vários outros estilos, como o samba, o rock, o jazz e o soul foram se incorporando e se misturando a MPB.
Já a música popular brasileira é toda música produzida no país, independe de seu caráter político. Hoje, a diferenciação dos dois estilos já se confundem e também se fundem, não sendo tão relevante a sua especificação como em outros tempos. Mas, é importante darmos atenção ao que fez sentido à época. A popularização do estilo musical se deu principalmente pela exibição dos festivais musicais pela televisão, que começou a se popularizar neste mesmo período. O primeiro deles, chamado Festival da Música Popular Brasileira foi produzido pela TV Excelsior, na cidade de Guarujá-SP, já em 1965, e teve dentre as canções finalistas “Arrastão”, música de Edu Lobo e letra de Vinícius de Moraes, cantada pela voz marcante e potente de Elis Regina, com apenas 20 anos.
Nestes mesmo encontros festivos, que ocorreram até 1969, nomes importante da nossa história musical alçaram voos, como Milton Nascimento, Chico Buarque e Caetano Veloso, além dos já citados.
Veja a letra de Arrastão:
Eh! tem jangada no mar
Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão
Eh! Todo mundo pescar
Chega de sombra, João Jovi
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
É meu irmão me traz Iemanjá pra mim
Minha Santa Bárbara me abençoai
Quero me casar com Janaína
Eh! Puxa bem devagar
Eh! eh! eh! Já vem vindo o arrastão
Eh! É a rainha do mar
Vem, vem na rede João prá mim
Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim
Ao que tudo parece, a letra mostra o cotidiano de um pescador, o que já é subversivo para o contexto pois levar a pensar em outra imagens, como a da rotina, além das que já eram recorrentes nas canções da Bossa Nova. Em Arrastão, o mar passa a ser um lugar de trabalho, além de lugar de admiração e adoração de Iemanjá, de onde se conquista o sustento e reflete um pouco do dia a dia do trabalhador brasileiro. Além dos temas sociais e políticos, o falar sobre o cotidiano da população acabou sendo uma das característica da MPB, além de apontar a necessidade de visões de outros mundos, a começar pelo desejo de um Brasil diferente. Por esse motivo, o gênero foi classificado posteriormente como música de protesto ou até como música politicamente engajada.
A deslumbrante performance de Elis de Arrastão, que rodopiava os braços energicamente enquanto cantava, quase sem parar, quebrou os paradigmas minimalistas das apresentações da Bossa Nova, o que deixou a plateia, profissionais da música e críticos pasmos, e ao mesmo tempo surpreendidos e admirados com tanto talento. Por isso, a composição é hoje considerada por muitos como o marco inicial do movimento MPB. A Elis… A gente sabe bem a sua história: uma das maiores performances brasileiras de todos os tempos.
A Jovem Guarda e o Tropicalismo
2.1 A Jovem Guarda
Ao mesmo tempo em que ocorriam as canções de protestos, caíam no gosto da população músicas do rock’n’roll, o que foi influenciado pelas músicas de artistas estrangeiros, como Os Beatles, Rolling Stones, Chuck Berry e Elvis Presley. Essa influência se deu no âmbito nacional, e levou novos artistas a compor letras com o mesmo estilo, reproduzindo os ambientes urbanos, falando sobre os namoricos no portão, o clima descontraído da cidade, os passeios de calhambeque pela cidade, a ida ao cinema, e os beijinhos roubados. Roberto Carlos, Wanderléia, Erasmo Carlos, Sérgio Reis, Os Vips, Golden Boys, dentre outros, foram os mais consagrados pelo movimento, que ficou conhecido como Jovem Guarda, ou mesmo “os reis do iê-iê-iê”, em referência ao “Yeah! Yeah! Yeah!” do quarteto britânico.
Essa corrente musical alcançou muito sucesso, tanto quanto a MPB, mas, acabou sendo criticada na época por viver “alienada” à realidade e aos problemas sociais que o país enfrentava. Isso acabou gerando concorrência pelas audiências nos programas da televisão: de um lado a galera engajada da MPB, do outro a galera roqueirinha e descompromissada da Jovem Guarda. Porém, hoje sabemos da importância de ambos para a história musical do país e que, independente das bandeiras que levantavam, todos faziam música para se divertir e minimizar os efeitos da vida real. E claro, para vender muitos lp’s.
2.2. O Tropicalismo
Se por um lado a Jovem Guarda viveu um rixa com a MPB, o Tropicalismo, movimento presente na mesma conjuntura, se preocupou em desenrolar os nós e ir contra a ideia de que a música de fora vinha regada apenas de intenções imperialistas e com intuito de vender produtos culturais. Então, os artistas expressivos decidiram romper com essa ideia e focaram em misturar a linguagem da MPB com as características da cultura pop mundial, incluindo aí o rock, a bateria, os solos das guitarras e até mesmo as psicodelias.
O que faz o movimento ser ainda mais interessante é essa integração e inovação dos ritmos no meio musical brasileiro, acabando por modernizar a estética musical com a junção de diferentes ritmos e sonoridades. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, os Mutantes e Rogério Duprat são um dos artistas mais expressivos do movimento.
Análise de algumas canções
Outra canção vencedora de um dos Festivais de 60, o de 1966, agora na TV Record, Disparada de Geraldo Vandré ganhou o gosto popular por ser expressa de forma inteligente e objetiva. Já no início da música, que foi interpretada no Segundo Festival da Música Popular Brasileira por Jair Rodrigues, Trio Maraiá e Trio Novo. Vejamos a letra:
Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar, eu vivo prá consertar
Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe do que eu
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
Já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei
O autor logo de ínicio prepara o público para segurar o coração, já que em seguida vai apresentar as angústias dos que vivem no sertão. A letra forte faz alusão do trabalhador como gado, passivo às dificuldades enfrentadas, e também à uma sociedade dividida em entre donos e trabalhadores, entre os que mandam e os que obedecem, talvez este seja o motivo de tamanho sucesso e reconhecimento pelos ouvintes. Outra música conhecidíssima de Vandré é “Pra não dizer que não falei das flores”, onde há o trecho “Vem vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, quase uma convocatória contra o regime. O canção lançada em 1968 tem grande apelo, pois no mesmo ano se instituiu o conhecido Ato Institucional número 5 em 13 de dezembro, marcante por ser o mais mais rígido do governo ditatorial, dada seu caráter de exceção, que possibilitava que os governantes punissem de forma arbitrária os que fossem considerados inimigos do regime. “Essa música é atentadora¹ à soberania do País, um achincalhe² às Forças Armadas e não deveria nem mesmo ser escrita”, disse o general Luís de França Oliveira, secretário da Segurança da Guanabara, em entrevista à Revista Veja. Depois de lançada, foi proibida pelo regime até 1979, além de render a tortura e o exílio do cantor.
Roda Viva, talvez uma das composições mais conhecidas de Chico Buarque, fala sobre o poder de escolha, a sina, é saudosista e também encara a repressão de frente. Principalmente no sentido da última, é explorada a roda viva, que vai levando nossas importâncias, como a viola para o eu-lírico, assim como nossa independência. Na canção, também fica expressa a rápida passagem do tempo e as alterações que faz em nossas vidas, e como quando nos damos conta, nem percebemos seus efeitos. Disso, nasce a saudade e as boas lembranças de uma época anterior à vivida pelo autor. O interessante é que na última repetição do refrão a melodia da música vai aumentando como um sentimento incontrolável, que perde as proporções gradativamente. Veja a seguir:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá…
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou…
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá…
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou…
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá …
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...(4x)
Com certeza você já deve ter ouvido também “Cálice” (1978), composta por Chico Buarque e Gilberto Gil. A obra tem como intertexto a famosa passagem bíblica (Pai, afasta de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue), que, no contexto, foi uma metáfora para representar o calar instituído pela censura. Além disso, toda a letra faz uma alusão ao sofrimento do cordeiro na cruz do calvário que representava toda a população reprimida. Foi a forma que os músicos acharam de dizer ao mundo que a liberdade de expressão estava caçada no Brasil. Genialmente, os compositores gritaram mundo afora o campo árido pelo qual passava o país no que se diz respeito à liberdade de expressão e, historicamente, constituíram um grito histórico de nossa música contra a repressão.
Pai, afasta de mim esse cálice (3x)
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice (3x)
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice (3x)
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
(Refrão)
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Fica a dica!
Viu só como pode ser interessante estudar história por meio da música? Elas são, sem dúvida, instrumentos potentes de leitura de nossa realidade social e política. É importante lembrar que após o AI5 essas composições mais políticas deixaram de ser feitas, devida à grande opressão que sofreram os artistas, mas, que o significado delas ficaram marcados para sempre em nossa história, por isso mesmo, até hoje, ainda fazem grande sucesso. A dica é: ouça as canções, interprete-as e discuta com seus professores e colegas dentro de sala, isso vai fazer seu horizonte acerca de História e de Cultura se ampliarem e com certeza ajudará nos vestibulares. Ainda hoje, as canções são largamente exploradas no Enem e em outras provas pelo Brasil.
¹ Usado no sentido de atentado.
² Significa ridicularizar, menosprezar
Lucas Lemos
Redator, social mídia, pesquisador e entusiasta das artes pelo Cena Livre de Teatro, grupo atuante na UFMT. Aluno do terceiro ano de Letras-Literatura na instituição federal, e fotógrafo nas horas vagas.
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