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Filosofia Africana e Saberes Ancestrais Femininos: útero do mundo
Um dia, quando ainda morava no sertão cearense, a menina que me habita acreditou que a
filosofia fosse possibilidade de construir pensamentos e práxis de libertação, onde a pluralidade de
saberes, de culturas, de povos fosse fonte para suas tessituras. Entretanto, ao chegar à Universidade,
encontrei uma filosofia sem poéticas de libertação, patriarcal e racista! No
[5] pensamento universal apresentado nas histórias da filosofia, nas metafísicas, éticas, teorias do
conhecimento, dentre outras “disciplinas”, não se viam / conheciam filosofias negras, femininas... ou seja,
o pensamento ocidental se instituía como universal, colocando os povos africanos e seus descendentes à
margem do pensamento. Dizia-se que só era (é) possível filosofar em alemão! E esse alemão é branco,
[10] masculino e heteronormativo.
O desencantamento do mundo provocado pela filosofia que se aprende nas universidades me
levou a um questionamento que mudou todo o meu percurso e acabou por me trazer, finalmente, o
encantamento do mundo... Perguntei-me: como será a filosofia em África? Como filosofar em “pretuguês”,
como nos ensina a pensadora Lélia Gonzalez?
[15] A filosofia africana traz encantamento. É vital tornar visível o pensamento africano,
afrorreferenciado. Compreendo que a(s) filosofia(s) africana(s), africano-brasileira, afrorreferenciada,
implica(m) a busca do rompimento com a colonialidade, que não acabou com o fim das diversas
colonizações de países europeus no continente africano e no Brasil. Implica a valorização e re-
[20] conhecimento de nossos saberes, de nossas culturas, de nossas filosofias, de nossos corpos. Re-
conhecimento de nossas escrevivências. Pois, como nos ensina Conceição Evaristo, nada nasce imune
ao que somos, às nossas vivências e experiências. Negar nossas escrevivências é seguir negando
nossas filosofias, nossos saberes produzidos por corpos vivos, produtores de conhecimentos.
[25] Quero seguir o texto dialogando com os saberes ancestrais femininos; dialogando com a filosofia
africana desde e com vozes de mulheres e do feminino que habita em todas as pessoas. Esses saberes
se apresentam como fonte de potencialização de nossas existências, de pertencimento, de ancestralidade
e de encantamento.
[30] Partindo dessa perspectiva, cada pessoa é constituída pelas energias femininas e masculinas. É
importante trabalharmos para mantê-las em harmonia. Entretanto, é a energia feminina que contém a
cabaça da existência, cabaça que gera, cria, co-cria. O feminino é o útero do mundo, potência da vida
comunitária, coletiva, pautada pela justiça e pelo bem viver. Carregamos toda uma ancestralidade que nos
[35] permite ser, existir, resistir, re-existir. Assim, somos ancestrais; nossos corpos são ancestrais e, portanto,
sagrados. Desse modo, nossa existência só é possível em contato com a natureza. Sem ela não somos. A
ancestralidade é a natureza. Os saberes ancestrais femininos nos ensinam que devemos voltar à terra,
pois ela é o centro da vida. Voltarmos ao centro da terra é ouvirmos nossa ancestralidade e nos
[40] encantarmos com essa escuta, uma escuta sensível que tece nosso ser-tão. É a escuta de nosso útero.
A escuta sensível se inicia com a escuta de nossa intimidade, portanto, de nossa ancestralidade,
de nossos corações. Essa escuta privilegia o corpo como produtor de sentidos, de conhecimentos, corpo
ancestral. Assim re-conhecemos suas singularidades diante do coletivo que permite nossa existência.
Nosso corpo é suporte de nossas vivências, experiências e sabedorias, de nossos sentidos; ele cria
[45] textualidades, reinventando a vida, potencializando o encantamento.
Os saberes ancestrais femininos são tecidos pelo conhecimento de nossa natureza, da natureza
que há em nós, conhecimento de nossos ciclos, da nossa potência criativa, do nosso poder de permitir e
potencializar a vida. Os saberes ancestrais femininos são a escuta da água que há em nosso útero, pois é
[50] escuta de nossa ancestralidade.
As filosofias da ancestralidade e do encantamento que tecem as filosofias africanas são bordadas
pelo pertencimento. Pertencimento é construção, formação e escuta uterina e, assim, descoberta do que
está inscrito em nosso íntimo; é ouvir o ritmo de nossos corações. É entender nosso eu interior e
[55] compreender o mundo, a vida desde esse pertencimento que é coletivo, enraizado, que é ser-tão.
Definimos nossa existência pelo comunitarismo e pela justiça social, ou seja, pela ancestralidade e pelo
encantamento.
Os saberes ancestrais femininos propõem que nos autorizemos a contar nossas histórias, a
[60] construí-las, reconstruí-las, contar sobre nossos valores, nossos saberes, nossas lógicas de
pertencimento, de sociedade, de partilha, contar sobre nós mesmas, desde
nossas escrevivências. Filosofar anunciando, resistindo, re-existindo, em um desafio cotidiano de
descolonização, desconstruções, transformAções e encantamento! Aprender a ouvir / sentir / conhecer /
[65] filosofar de corpo inteiro, desde o chão que pisamos e que nos fortalece, é enraizar-se. O enraizamento é
um movimento de expansão, fixação, movimento e profundidade, absorção da água para manter a energia
vital... não há vida sem a água. O feminino é o útero, a cabaça, a água que permite a existência.
MACHADO, Adilvênia Freire. Filosofia Africana e Saberes Ancestrais Femininos: útero do mundo. Disponível em: https://diplomatique.org.br/filosofia- africana-e-saberes-ancestrais-femininos-utero-do-mundo/ Acesso em: 06 nov. 2020. (Adaptado).
O uso dos termos “pretuguês” (linha 12) e “escrevivências” (linha 19) revela a