ENTREVISTA COM O ESCRITOR MIA COUTO
1. Quais seus principais interesses como cientista?
Sou biólogo e ecologista. O que me fascina é a fronteira entre a descoberta científica e a margem de
mistério que sempre subsiste. Mas sobretudo a biologia me ajudou a repensar-me como pessoa solidária
e de identidades partilhadas. A biologia ensinou-me a entender outras linguagens, ensinou-me a fala das
[5] árvores, a fala dos que não falam. Resgatei uma intimidade perdida com criaturas que parecem muito
distantes de nós. Hoje em nenhum lugar me sinto uma criatura solitária. Com ela entendi a vida como
uma história, uma narrativa perpétua de que somos apenas uma pequena parte.
2. O senhor afirmou uma vez que os cientistas estão perdendo o desafio de ter dúvidas. Quais são as suas?
Mais do que dúvidas, tenho receios. Penso que aos poucos a ecologia tenha sido recuperada e domesticada.
[10] A ecologia oferecia uma visão inovadora e capaz de questionar o homem como centro e proprietário
do patrimônio natural. Hoje generalizou-se uma terminologia simplificada que confirma esse lugar de
pretensos administradores dos patrimônios naturais que curiosamente são designados por “recursos”. As
próprias pessoas são designadas por “recursos humanos”. O termo “ecológico” passou a ser uma etiqueta
de marketing. Há sabonetes ecológicos, palitos ecológicos. Não tarda que haja armamento ecológico.
[15] 3. Que consequência isso pode ter?
As questões ambientais foram apartadas e autonomizadas. Sugere-se que os biólogos sejam espécies de
fiéis de armazém no controle desses recursos. Sugere-se que os ecologistas devam ocupar-se de espécies
e habitats em extinção. Que fiquem pelas questões “ambientais”. Mas os problemas da falta de água e da
fome são também ambientais.
[20] 4. O senhor tem atuação política importante e vínculo expressivo com o Brasil. De que forma enxerga o que está acontecendo no país?
Não sou brasileiro e seria uma pretensão opinar sobre assuntos que são dos brasileiros. A única coisa
que posso dizer tem a ver com o mundo em geral: espera-se da política uma ética, um sentido de
missão e de entrega aos outros. Essa conduta ética tornou-se no mundo todo uma exceção. Talvez seja
[25] necessário falar menos dos políticos para nos preocuparmos mais com a política. Não aquela que nos é
dada a ver pelas mídias mais poderosas que se tornaram hegemônicas. Teremos todos nós que inventar
um outro modo de fazer política.
5. Uma marca de seu estilo é a criação de neologismos, caso de “interinvenções”. As palavras que existem na língua portuguesa já não bastam para expressar o que se quer?
Os idiomas são entidades vivas e raramente são os escritores que criam mudanças que se tornam registro
[30] corrente. São as pessoas comuns. Não podemos abdicar do direito (e sobretudo do prazer) de sermos
coprodutores desse corpo social. Não se trata de uma questão literária. Mas da possibilidade de ver no
idioma um modo de assumirmos uma identidade solidária e coletiva e em permanente construção.
6. Embora seja conhecido como um “escritor da terra”, tanto por ser biólogo quanto por explorar temas ligados à natureza, há em sua obra um certo ar fantástico, até surrealista. Como conduzir o leitor entre o real e o imaginário sem confundi-lo?
Talvez o leitor precise mesmo de ficar confuso, de perder o pé e ser convidado a procurar um novo chão.
[35] Se a obra de arte não fizer isso, ela não cumpre a sua função de nos conduzir a uma viagem, a saltar
fronteiras e a desobedecer certezas. E talvez seja necessário questionar essa construção de literatura do
“mágico” e do “fantástico”. Não existe literatura que não caminhe com um pé no fantástico e outro no real.
Adaptado de https://istoe.com.br/teremos-que-inventar-um-outro-modo-de-fazer-politica/, 15/06/2017.
Na resposta à pergunta 2, Mia Couto formula uma crítica que se fundamenta no seguinte ponto de vista acerca das terminologias: