Uma vez, numa recepção da nossa embaixada em Londres, uma dama inglesa, depois de ouvir Aquarela do
Brasil, estranhou ironicamente a associação dos termos “Brasil brasileiro”. A França é francesa, dizia, a Inglaterra
é inglesa, o Afeganistão é afegane, sem que se precise dizer… Minha senhora, respondeu-lhe alguém, é que o
Brasil é muito brasileiro, é o único país brasileiro do mundo, e só quem nos conheça bem será capaz de entender
isso.
Em fase de transição econômica há alguns anos, em fase de reforma desde a mudança do governo, às vezes
penso que o Brasil corre o risco de se tornar pouco brasileiro em alguns sintomas essenciais da nossa maneira
coletiva de ser. Nem sempre é fácil distinguir as virtudes e os defeitos tipicamente brasileiros, havendo
possibilidade de muitos erros de conceituação.
Dentro da relatividade histórica, Dom Pedro I foi muito brasileiro; Dom Pedro II igualmente. Pois eu acho que
o primeiro possuía vários defeitos essenciais ao caráter brasileiro, enquanto o segundo cultivava virtudes que
podiam ser banidas da nossa formação, virtudes bastante monótonas ou bobocas.
A impontualidade em si é um mal; no Brasil, entretanto, ela é necessária, uma defesa contra o clima e as
melancolias do subdesenvolvimento. Deixar para amanhã o que se pode fazer hoje é outro demérito que não se
pode extinguir da alma nacional.
Uma finta de Garrincha, uma cabeçada de Pelé, uma folha-seca de Didi são parábolas perfeitas do
comportamento brasileiro diante dos problemas da existência. Eles maliciam, eles inventam, eles dão um jeitinho.
Já cuspir no chão e insultar as formas elementares da higiene são também constantes brasileiras, mas devem ser
combatidas furiosamente.
Ter terror à pena de morte é um sentimentalismo brasileiro da mais fina intuição progressista; cultivar o
entreguismo da saudade já me parece uma capitulação inútil.
“Deixa isso pra lá” é uma simpática fórmula do perdão nacional; já o “rouba mas faz” é uma ignorância
vertiginosa. Valorizar em partes iguais a ação e o devaneio (dum lado o trabalho, do outro, sombra e água fresca) é
uma intuição brasileira que promete uma síntese do dinamismo do Ocidente e da contemplação oriental.
O andar da mulher brasileira, como o café, é uma das grandes riquezas pátrias. Aliás, o café chegou até nós
muito brasileiramente: o sargento Palheta recebeu gentilmente as mudas das mãos da condessa d’Orvilliers,
mulher do governador da Guiana Francesa. [...]
Mas o ostensivo e verboso donjuanismo brasileiro, sobretudo no exterior, é uma praga. Achar-se irresistível é
uma das constantes mais antipáticas do homem verde-e-amarelo. O relato impudente de façanhas amorosas, a
mitomania erótica, o desrespeito agressivo à dignidade da mulher são desgraçadamente coisas muito brasileiras. A
instituição do “faixa”, do “meu chapa”, é cem por cento brasileira, desde que seja gratuita; o detestável tráfico de
influência não é nosso. Dar um jeito é bom; dar o golpe é mau.
A sagacidade de Minas, a fidalguia do Sul, a combatividade do Nordeste são características brasileiras; o
dinamismo organizado de São Paulo não é tão nosso assim, mas é necessário. Para Capistrano de Abreu, o jaburu
simbolizara o Brasil; São Paulo foi o primeiro estado a superar a tristonha fase do jaburu. E Macunaíma ainda
representa o brasileiro? E Jeca Tatuzinho? O tempo passou: Macunaíma comprou naturalmente uma lambreta,
mas, em compensação, estuda economia ou física nuclear; os filhos de Jeca Tatuzinho são hoje playboys,
contrabandistas ou industriais, nesta imensa misturada contraditória que é o Brasil.
Resta por fim como espantalho gritantemente brasileiro, vergonhosamente brasileiro, o pobre, o nosso
compatriota de pé no chão, destroçado pelos parasitas, cegado pelo tracoma, morando em casebres de barro,
palafitas, mocambos, favelas, coberto de feridas, analfabeto, mal-alimentado, vestido de farrapos, pobre criatura
humana, pobre bicho humano, pobre coisa humana, pobre brasileiro humano.
A partir do fragmento a seguir, leia e analise as afirmações abaixo e marque a resposta correta:
“Dentro da relatividade histórica, Dom Pedro I foi muito brasileiro; Dom Pedro II igualmente. Pois eu acho que o primeiro possuía vários defeitos essenciais ao caráter brasileiro, enquanto o segundo cultivava virtudes que podiam ser banidas da nossa formação, virtudes bastante monótonas ou bobocas.” (l. 10-12)
I – “Dentro da relatividade histórica” consiste no adjunto adverbial da oração correspondente.
II – A expressão “muito brasileiro” é o objeto direto do verbo “foi”.
III – A oração “que o primeiro possuía vários defeitos essenciais ao caráter brasileiro” é uma oração subordinada substantiva objetiva direta.
IV – A expressão “enquanto” introduz uma oração coordenada aditiva.
Está (ão) correta (s):