Memória nos dá a chance de crescer com os erros e ter um futuro melhor*
Suzana Herculano-Houzel**
[1] Que tal ter uma chance de recomeçar um dia malfadado – especialmente se este for o dia em que
[2] você morre? No filme “No Limite do Amanhã”, que acabou ficando mais conhecido pelo subtítulo “Viva. Morra.
[3] Repita”, o recomeço a cada morte acontece com o personagem principal, major Cage, vivido por Tom Cruise,
[4] como efeito colateral de ter morrido coberto com o sangue do alienígena que ele acabara de explodir.
[5] O recurso, que torna o filme interessante (é um dos meus filmes de ficção científica favoritos), arrancava
[6] gargalhadas do meu filho ontem à noite cada vez que Cage, moribundo ou apenas ferido, mas incapaz de
[7] continuar a missão, era sumariamente executado pela parceira – e assim o dia recomeçava, com uma nova
[8] chance de vencer os alienígenas.
[9] Mas o ciclo só funciona porque o personagem está contaminado de sangue alienígena e somente ele
[10] retém a memória de tudo o que aconteceu no dia de cada uma das suas (muitas) mortes anteriores. O contraste
[11] com os demais personagens, para quem o dia que recomeça é apenas mais um novo dia, é uma alegoria
[12] excelente do que nos dota de uma história pessoal: não apenas um cérebro, mas um cérebro com memória.
[13] É graças à capacidade de ser modificado de acordo com sua própria atividade, ao sabor dos acontecimentos,
[14] que o cérebro tem memória. Com a licença poética da ficção, o cérebro de todos, menos o de Cage,
[15] é restaurado ao seu estado de origem no dia que recomeça repetidas vezes. Cage, ao contrário, mantém a
[16] vantagem que todos nós temos na vida real: transportar o aprendizado do dia anterior para o dia seguinte.
[17] É por isso que recomeços, na vida real, são, em geral, muito mais bacanas e ricos do que na ficção.
[18] Muda-se para uma nova cidade, mas não se esquecem as lições aprendidas na anterior; troca-se de emprego,
[19] mas não se perdem todas as habilidades, manhas e truques desenvolvidos com a experiência passada; novas
[20] amizades são feitas, mas isso não torna as anteriores menos importantes ou queridas. Pelo contrário: as novas
[21] amizades se beneficiam de nossos erros e acertos do passado.
[22] Graças à memória, nossa bagagem só faz crescer ao longo da vida. Mesmo os acontecimentos ruins, as
[23] pessoas que não merecem lugar na memória, os dissabores têm seu valor, como marcos que nos dizem “evite
[24] que isso aconteça de novo”. Recomeçar, na vida real, é começar mais uma vez – e melhor.
*Texto publicado no jornal Folha de São Paulo, em 02 de agosto de 2016. Disponível em . Acesso em 02 set. 2016. Adaptação.
**Neurocientista.
Considerando o sentido do texto, assinale a alternativa correta.