Notícias de Gotham City
[1] Imagino que todos tenham tido notícia do fato. No início de junho, ocorreu no Parque da Redenção, em Porto
[2] Alegre, outra jornada da Serenata Iluminada. A atividade é organizada via redes sociais e reúne milhares de jovens
[3] dispostos a ocupar os espaços públicos para garantir sua condição pública. No caso da Redenção, os manifestantes
[4] se opõem à proposta do cercamento que vem sendo cogitada há anos. Nas serenatas, levam velas, lanternas,
[5] violões, se divertem, debatem e se manifestam pacificamente.
[6] Jornalistas presentes ao evento perceberam que algumas pessoas estavam sendo assaltadas quando se
[7] afastavam do grupo maior. Nas imediações, não havia policiamento. Então, o comandante do 9º BPM, tenente-
[8] coronel responsável pela área, foi informado do que estava ocorrendo pelo whatsapp. Sua resposta foi: “− Quem
[9] frequenta esse tipo de evento não quer BM perto. Agora aguentem! Que chamem o Batman! Gente do bem está em
[10] casa agora!”
[11] Entre muitos dos seus colegas, o oficial encontrou apoio e compreensão. Em um país civilizado, atitude do tipo
[12] seria considerada evidência de inaptidão ao trabalho policial.
[13]Vejamos os motivos.
[14] Todo policial com formação profissional deve saber que a principal arma a sua disposição não é aquela que
[15] carrega na cintura. Para o trabalho policial, a arma mais importante é a informação.
[16] Quando os policiais possuem uma informação de qualidade, sabem o que fazer. Caso contrário, atuam às cegas
[17] e a possibilidade de que produzam bons resultados se aproxima de zero. A fonte de informação mais ampla e mais
[18] acessível para a polícia é a população. Por isso, é fundamental para o trabalho das polícias que seus membros tenham a confiança
[19] do público. Quanto
[20] mais a cidadania confiar na polícia, mais irá informar aos policiais, mais irá demandar seus serviços e mais irá
[21] colaborar com investigações em andamento.
[22] Em um contexto de confiança-colaboração, as polícias se tornam muito mais eficientes e as taxas de impunidade
[23] caem significativamente. Já quando as pessoas não confiam nas polícias, elas deixam de registrar ocorrências,
[24] param de solicitar proteção e se recusam a colaborar. Não por acaso, as melhores polícias do mundo selecionam e
[25] formam seus policiais para que as pessoas sejam tratadas com urbanidade e respeito e que em qualquer abordagem,
[26] inclusive quando se tratar de usar a força, nos casos em que ela seja absolutamente necessária, isto não autorize
[27] qualquer incivilidade.
[28] A criminologia moderna acumulou toneladas de evidências a respeito das dinâmicas criminais que seguem
[29] desconsideradas no Brasil. Com respeito aos espaços públicos, sabemos que o medo do crime – ou a sensação de
[30] insegurança – faz com que as pessoas se isolem em suas residências, abandonando ruas e praças que, antes, eram
[31] locais de convivência. Um dos resultados desse processo − que elimina a vigilância natural − é que os espaços
[32] públicos passam a ser ocupados por pessoas envolvidas com o crime, especialmente à noite. Não por outra razão,
[33] uma política séria de segurança – pensada na confluência de vários serviços públicos – deve estimular e propor
[34] atividades culturais e esportivas noturnas para a ocupação de espaços públicos.
[34] Iniciativas como a Serenata Iluminada são importantes, assim, também para a prevenção do crime. A ideia de
[36] que os humanos se dividem em “pessoas do bem” e “pessoas do mal” costuma ser bastante útil na formação moral
[37] das crianças.
[38] Quando contamos a elas histórias com “heróis” e “vilões”, a divisão maniqueísta corporifica virtudes e
[39] vícios, facilitando a tarefa pedagógica.
[40] Adultos, entretanto, deveriam saber que as pessoas não são, em si mesmas, boas ou más, mas boas e más;
[41] que todos possuímos qualidades e defeitos; que carregamos possibilidades trágicas e que, a depender das nossas
[42] circunstâncias, ocorre de agirmos escolhendo alternativas ilegítimas, ilegais ou imorais. A propósito, estudos de
[43] autorrelato (self report studies) sobre práticas criminais mostram que quase todas as pessoas cometem um ou mais
[44] crimes, em algum momento de suas vidas, especialmente quando muito jovens. O ser humano, entretanto, não pode ser
[45] reduzido a um gesto. Ele é maior e mais complexo do que uma ação viciosa ou virtuosa. Por isso, não deveríamos
[46] pemitir que as pessoas fossem tratadas a partir de “rótulos”. Conceber que os milhares de jovens que se reuniam
[47] na Redenção naquela noite não eram “pessoas de bem” seria apenas ridículo, não estivéssemos falando de alguém
[48] a quem se confiou a responsabilidade de proteger pessoas, sem adjetivos.
[49] Declarações do tipo conspiram contra a polícia; degradam a imagem da instituição e ampliam seu descrédito
[50] entre a população. Reforçam, no mais, a imagem de uma polícia autoritária, ineficiente e orgulhosa do que não sabe.
[51] Bem, talvez seja a hora de parar de ler histórias em quadrinhos.
(ROLIM, Marcos. Notícias de Gotham City. Disponível em: http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2015/07/noticias-de-gotham-city. Adaptado. Acesso em 12 ago. 2015)
Responda, com base no texto “Notícias de Gotham City”, à questão a seguir
Para o autor, a divisão entre “pessoas do bem” e “pessoas do mal”: