INTERSECÇÕES NA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA
(excertos)
A ficção científica é ampla o bastante para incorporar características de outros gêneros, sem necessariamente deixar de ser FC. Exemplos das misturas de FC e ficção de detetive, FC e romance histórico, FC e ficção militar, FC e western são numerosos. A respeito disso a crítica norte-americana Farah Mendlesohn escreveu na introdução de The Cambridge Companion to Science Fiction (2003): “A ficção científica é menos um gênero ... do que uma discussão em progresso”. Mendlesohn diz ainda que a “FC é um campo de batalha entre diferentes grupos de fãs e entre diferentes grupos de críticos”, e define como “um modo de escrita que parece existir em variação relativa aos padrões e demandas tanto do establishment literário quanto do mercado de massa”. Enfim, ela suspeita que a FC seja, por emprestar livremente estruturas de outros gêneros, mais do que um gênero: “A FC é uma discussão ou um modo de escrita”.
Não obstante, o contraste mais claro que se estabelece automaticamente é aquele entre a ficção científica e a ficção literária, também chamada de “literatura mainstream”. A FC, assim como o restante da literatura de gênero, não é mainstream. Mas existem pontos de intersecção, de modo que se pode dizer, retomando a discussão anterior, que uma história em particular seja um conto fantástico e um conto de FC. Esses momentos de intersecção têm sido chamados de FC “borderline” ou “fronteiriça”, e são consistentes na história do gênero no Brasil. Isso acontece em parte pelo fato de que aqui, com raras exceções, a ficção científica nunca representou um nincho comercial particularmente forte, mais ainda em termos de FC brasileira. (...). O relacionamento entre a FC brasileira com os modelos anglo-americanos, distribuídos em épocas e em áreas de veiculação distintas, é também tortuoso e nem sempre livre de questionamentos. (...).
A FC é um gênero sempre em busca de novas ideias, de novas abordagens. Gabando-se de ser a “literatura da mudança”, transita entre a necessidade de expressar criativamente o potencial de transformação da ciência e da tecnologia, e uma objetividade narrativa que, para muitos, é sinal de conservadorismo estético ou da inserção do gênero como puramente comercial. A verdade é que a FC precisa do leque mais aberto possível de recursos, se deseja evitar a estagnação. A vida humana se desdobra em complexidade, e não espera sentada por nenhum gênero literário. (...).
Afinal, se “a maioria absoluta de obras pertencentes à ficção científica brasileira é constituída de FC fronteiriça”, isso significa que essa maioria fez pouco para o estabelecimento definitivo do gênero no quadro das letras nacionais. Boa parte delas são obras menores de grandes nomes que não vieram ao gênero com a seriedade ou a familiaridade necessária para produzir trabalhos realmente significativos. Entre 1972 e 1982, a propósito, houve um momento em que autores do mainstream – Herberto Sales, Chico Buarque, Ruth Bueno, Ignácio de Loyola Brandão, etc. – aproximaram-se da FC para construir alegorias contra o regime militar, e a censura e a tecnocracia que o acompanhavam. Mas o casamento durou pouco: a redemocratização fez as distopias e os contos cautelares caírem de moda, e o gênero foi novamente abandonado pela ficção literária. (...).
Assim como o Brasil dos muitos biomas é detentor da maior biodiversidade do planeta, nossa literatura deveria refletir a mesma diversidade – a diversidade cultural e social do Brasil urbano e do rural, do Brasil que fabrica satélites artificiais e daquele que constrói casa de barro e sapé, do Brasil do Primeiro Mundo e do Paleolítico internado na selva.
CAUSO, Roberto de Sousa. Intersecções na Ficção Científica brasileira. In: ___. Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica. São Paulo: Devir, 2009.
Durante o regime militar, autores brasileiros produtores de literatura mainstream publicaram obras que pertenciam ou que se aproximavam do gênero FC. Sobre este fato, é falso inferir que