TEXTO:
É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um
amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia.
Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável
melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns
[5] telefonemas, abraço a distância alguns amigos. Essas
poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem
alegremente à minha, são quentes e me fazem bem.
“Feliz Natal, muitas felicidades”; dizemos essas coisas
simples com afetuoso calor; dizemos e creio que
[10] sentimos, e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!
Desembrulho a garrafa que um amigo teve a
lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a
geladeira, preparo um uísque e venho me sentar no
jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem,
[15] oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa
noite de rua quieta. Esse jardinzinho tem o encanto sábio
e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno
espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar;
tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de
[20] roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e
amarelos.
Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que
passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste
momento, sozinho, com uma espécie de religiosa
[25] emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e
desarrumada deste ano, uma clara mancha de sol.
Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da
vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras
pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou
[30] um homem sozinho, numa noite quieta, junto de
folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de
muitas pessoas.
De repente, um carro começa a buzinar com força,
junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha
[35] me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar.
Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu
esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente.
Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua, e sorrio: é
um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se
[40] pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o
lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai
vivendo. Bonito presente de Natal!
O motorista buzina ainda algumas vezes, olhando
uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto
[45] naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre
a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem
procura o motorista retardatário; mas a janela permanece
fechada e escura. Ele movimenta com violência seu
grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo
[50] a rua.
Volto à minha paz e ao meu uísque. Mas a
frustração do lixeiro e a minha também quebraram o
encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio
devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e
[55] de alegria na casa de uma família amiga.
BRAGA, Rubem. Natal. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. p. 267-268 (Seleção Saraiva Vira-lata).
Há nexo de equivalência referencial no texto entre