O legado simbólico está garantido
[1] Legado é uma palavra perigosa quando aplicada a eventos que alavancam o uso de dinheiro público em infraestrutura, pois é um
[2] substantivo futuro empregado como argumento para justificar gastos bilionários em obras. Numa cidade de um país em que as propinas
[3] vêm sendo regra em empreitadas que podem ruir ou se transformar em elefantes brancos, falar em legado material no finzinho de um
[4] evento é uma aposta no escuro.
[5] Quando a Força Nacional e os esquemas especiais que fizeram o Rio parecer um modelo de cidadania e organização durante os 15 dias
[6] de 2016 deixarem a cidade, o carioca vai cair na real e “no real”, no sentido lacaniano: as forças ocultas de nosso abismo vão continuar
[7] insistindo em “não se inscrever” na consciência que temos de seus resultados. A cidade, partida por algo monstruoso, subterrâneo,
[8] renascerá: UPPs na lona, milícias, violência policial, Estado falido e acéfalo, calamidade na saúde, a baía poluída.
[9] Há, contudo, um legado imaterial que, paradoxalmente, é mais fácil de ser constatado, aferido, e até comprovado desde já: o Rio, quando
[10] recursos são alocados para onde devem, pode ser a cidade que gostaria de ser. E sentimos esse gosto, como uma promoção por tempo
[11] determinado. O improviso desse exemplo, motivado por um dinheiro de exceção (do COI e das obras), trouxe para o carioca um espelho
[12] ideal de si mesmo, refletido em bilhões de televisores e monitores Brasil adentro e mundo afora.
[13] A não ser que algo ainda aconteça nessa segunda-feira que já amanheceu e segue o giro das 24 horas finais da despedida, a experiência
[14] mágica da Olimpíada transcorreu sem acidentes especialmente graves, sem desmoronamentos, sem vexames organizacionais, sem
[15] mortes de atletas atacados por mosquitos, sem ondas descontroladas de assaltos ou violência e sem atentados terroristas.
[16] O “eu acredito” gritado nas competições flutuou também na esfera do acreditar na cidade, no país, um “Yes, we can” lastreado em
[17] histórias como a da judoca Rafaela: apesar do descaso do poder público, alguém pode sair da Cidade de Deus e ir morar no Olimpo por
[18] algumas temporadas. A fama de mais bela cidade do mundo se cristalizou, a gentileza e a amizade dos cariocas foi exaltada, a troca
[19] cultural foi intensa e frutífera. (...) O incidente dos banheiros australianos na Vila Olímpica terminou com o canguru de pelúcia na mão
[20] do prefeito, e teve alta simbologia: depois do susto, não se soube de outra delegação que reclamasse ostensivamente, e o canguru acabou
[21] como amuleto invertido do sucesso dos Jogos. A água verde de algumas piscinas acabou dando até um charme à paleta multicolorida do
[22] evento, apesar de alguns olhos irritados. De resto, as instalações funcionaram como uma caixinha de música, com muita música, por
[23] sinal.
[24] O metrô (com a Linha 4 cercada de suspeitas inevitáveis), as filas de BRT com ônibus a cada 15 segundos, os trens, as passarelas: quem
[25] circulou não teve do que reclamar, não houve tumultos, pisoteamentos. Foi um bom exercício, mas atenção: a maquiagem termina hoje.
[26] Circulando, circulando, vamos saber. Mas não teve quebra-quebra nem hooligans (coisa de Eurocopa), a não ser, claro, a gangue mijona
[27] de nadadores americanos liderada por Ryan Lochte, o mané modelo dos Jogos.
[28] Trapalhada que, aliás, pode ser considerada uma espécie de cereja no bolo do legado imaterial, e com alto poder marquetológico: o único
[29] assalto a atletas foi uma farsa de estrangeiros e, ainda que os seguranças do posto tenham agido de maneira não exatamente exemplar, o
[30] assunto virou top story em grandes redes de TV ianques, e a maior superpotência do planeta se curvou ao Brasil. (...)
[31] Paralelamente, outro atleta americano, Michael Phelps, em postagem no seu Twitter, disse já estar com saudades do Brasil, de seu povo,
[32] de sua beleza. Totalmente abrasileirado, Usain Bolt, na final do futebol, em que o Brasil conquistou o ouro contra a Alemanha, filmou
[33] o gol de falta de Neymar e deve ser tema de desfile de escola de samba ou convidado para desfilar em 2017. Na final do revezamento
[34] no Engenhão, o homem mais rápido do mundo, agora aposentado e desempregado, mostrou que já sabe sambar. (...)
[35] Bem mais tarimbado, outro profissional do “NYT”, o colunista e repórter Roger Cohen, que já viveu no Brasil dos anos 1980, escreveu
[36] um artigo apontando o que mudou de lá para cá (era correspondente durante o governo Sarney), a consciência que o país tem hoje de
[37] seus problemas e o esforço que vem fazendo para superar a corrupção endêmica. Ele se disse cansado de toda a aposta contra a realização
[38] a tempo das tarefas para os Jogos, da ladainha idealizada sobre a selva-Brasil, e, com fina ironia, reclamou de se culpar o Rio por não
[39] ter resolvido “todos os seus problemas sociais antes da Rio-2016”: “Há algo no mundo desenvolvido que não gosta de um país em
[40] desenvolvimento que organiza um evento esportivo de grande envergadura”, escreveu, terminando por dizer que não adianta: o Brasil
[41] será um dos atores principais do século XXI.
[42] Num mundo em que tudo é marca, esse “algo” que busca excluir o Brasil do futuro foi bombardeado pelo sucesso da Rio-2016, que
[43] virou uma trademark não só de nossa visibilidade, mas de nossa viabilidade como cidade e como país. Este é o legado simbólico mais
[44] forte. É preciso, porém, que a vontade de potência seja acompanhada pela vontade política com um viés de vetor social. Do contrário, o
[45] ciclo de vida da nova marca será curto.
(BLOCH, Arnaldo. O legado simbólico está garantido. 22 de agosto de 2016. O Globo. Adaptado. Disponível em http://oglobo.globo.com/esportes/o-legado-simbolico-esta-garantido-19969374 . Acesso em 22 ago. 2016)
Responda, com base no texto “O legado simbólico está garantido”, a questão a seguir
Considerando o contexto das Olimpíadas e as ideias desenvolvidas no texto, está incorreto o que se afirma em: