EM BRASÍLIA, o clima tem sido denso de fofocas, expressão popular que os comentaristas políticos, sérios, conspícuos¹, traduzem por “tensão”. E aqui entre nós, as tensões têm sido muitas e graves: quebra de sigilo na Receita Federal, escândalos na Casa Civil, longuíssima e inútil discussão no Supremo Tribunal Federal sobre a lei da Ficha Limpa, nepotismo diversificado e, menos recente, o mensalão envolvendo parlamentares, prisão de políticos, desentupido tráfico de influência, corrupção em várias modalidades e por aí vai.
Como se não bastassem as tensões brasílicas, fatos e versões vindos de outras praças fazem o rei, o clero e o povo ficarem assanhados: previdência social deficitária, restrições à liberdade de imprensa, possibilidade de um segundo turno, Tiririca garantindo que terá 1 milhão de votos, o último debate na TV seria sangrento e decisivo, o diabo.
O mais interessante é que, em Brasília, todo mundo é bem-informado. E ninguém fica realmente alarmado. Sou do tempo em que o Rio era a capital federal, e uma fofoca na rua do Ouvidor, um incidente no Golden Room do Copacabana Palace ou uma dor de barriga mais virulenta no líder do governo faziam o país estremecer, os tanques desciam da Vila Militar, o líder da oposição subia à tribuna no grande expediente e declarava, aos berros ou em prantos, que o país estava à beira do caos, a pátria finalmente precipitada no abismo.
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Em Brasília não tem nada disso. O clima é tenso, a dívida é alta, os juros altíssimos, ninguém sabe onde está a saída - e parece que ninguém quer sair de lugar nenhum. Mas, à noite, vão todos aos coquetéis, às recepções e às homenagens a isso ou àquilo. A capital federal é, de longe, a cidade que mais importância dá a essas reuniões provincianas, onde depois dos discursos e canapés com palito espetando as azeitonas, serve-se um jantar dançante à base de “Moonlight Serenade”, o foco de luz multicolorido passeando pelo salão para dar clima de musical da Metro dos anos 50.
Não se trata de saudosismo nem de patriotismo deficiente. Mas prefiro os tempos das crises mais cruas, que traziam o Regimento Sampaio para acampar na praça da República, faziam os rádios tocar os dobrados militares de praxe, os jornais vendiam mais e tudo terminava deixando no ar a necessidade de uma nova crise para consertar as coisas.
Nada se resolvia, todos permaneciam nas posições em que estavam. Não é necessário citar “O Leopardo” de Lampedusa: é preciso de vez em quando agitar as coisas para que tudo continue como sempre.
Naquele tempo, a pizza ainda não havia entrado no mercado, de maneira que tudo terminava em strogonoff, iguaria então recente e que estava em moda. Era, segundo se dizia na época, de particular estima das esposas dos oficiais do Estado-Maior.
Havia até mesmo uma teoria sociológica para explicar o apego dos militares pelos cargos públicos: provado uma vez, o strogonoff subia ao patamar de símbolo do poder. Rasgavam a Constituição para terem direito permanente ao prato que só era servido na boate Vogue, trazido para nossas plagas² pelo barão von Stuckart, barão não sei de onde, acho que do império austríaco.
(Carlos Heitor Cony, Folha de S. Paulo - 01/10/2010)
Ao lado de uma linguagem formal, o autor lança mão de uma linguagem coloquial. Assinale o item em que NÃO há traços de coloquialidade: