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A melancolia e a literatura
Há muito em comum entre literatura e medicina. Ambas têm a ver, em última análise, com a condição humana; e nada é mais revelador da condição humana do que a doença. Quando a pessoa está doente, sobretudo quando está gravemente doente, caem suas máscaras, suas defesas, e ela se revela tal qual é. Mas esta é uma situação que precisa ser expressa através da palavra, e de novo, este é um elo comum.
A literatura usa a palavra como instrumento estético; a medicina usa a palavra como forma de investigação, como meio de comunicação e também como terapia – a talk therapy, que é a denominação dada pelos norte-americanos à psicoterapia. E as palavras têm peso: câncer, por exemplo. Uma das tarefas do médico é convencer o paciente que ‘câncer’ é uma palavra, não um veredicto.
Finalmente, tanto literatura como medicina têm a ver com narrativa; no primeiro caso, como obra de um escritor; no segundo, como a forma pela qual o paciente fala de seus problemas. A medicina baseada em narrativa (narrativa esta que vai além da anamnese; é antes uma história de vida) é hoje vista como uma forma de compreender o paciente como pessoa.
A literatura pode nos falar da doença e da medicina de um modo original e revelador, mais revelador às vezes de que os próprios manuais médicos. Maravilhosas descobertas podem ser feitas no comum território partilhado pela medicina e pela literatura.
A doença mental tem, neste território, uma presença importante, como o demonstram as numerosas obras de escritores, poetas e ensaístas sobre o tema. E, dentro da doença mental, há um tema que atrai particularmente a atenção dos autores: a melancolia, que os antigos conceituavam como uma tristeza mórbida.
A melancolia teve uma aura artística que de certa forma compensava o sofrimento que podia causar. Mas melancolia hoje é um diagnóstico pouco frequente. A doença mental mais prevalente em nossos dias é a depressão. Que difere profundamente da melancolia... Não estamos mais falando de uma condição existencial; falamos de doença, com mecanismos fisiopatológicos conhecidos ou investigáveis, com tratamento, codificado ou não. Uma concepção que, para muitos, não traduz a real dimensão de um sério problema emocional.
“Depressão é um termo que tanto pode ser usado para descrever um declínio na economia como um afundamento no solo”, diz o escritor norte-americano William Styron, para quem o termo ‘depressão’ é intrinsecamente malévolo, além de reducionista. As pessoas não se dão conta do sofrimento pelo qual passa o deprimido, um sofrimento descrito como “uma uivante tempestade no cérebro”. Quando alguém diz que está deprimido, a reação dos outros é mais ou menos padronizada: ― Você vai sair disso. Todos nós temos os nossos dias ruins.
Contribui para a perda da aura que cercava a melancolia o reconhecimento cada vez maior dos fundamentos biológicos da depressão, vista como resultado de um distúrbio (tratável) da bioquímica cerebral. Da melancolia à depressão um longo caminho foi percorrido, um caminho marcado pelas grandezas e misérias da condição humana. Das quais toda a grande literatura inevitavelmente dá testemunho.
SCLIAR, M.. A melancolia na literatura. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, ##plugins.citationFormat.abnt.location##, 1, ago. 2011. Disponível em: . Acesso em: 24 Fev. 2018).
No decorrer do Texto, o autor é sistematicamente convincente quanto: