TEXTO:
Prática cotidiana da intimidação
Não faz muito tempo, vi dois meninos sendo
interpelados abruptamente pela polícia, não nas avenidas
movimentadas que trazem e levam a população
trabalhadora que mora nas periferias. Ao contrário, estava
[5] sentada numa praça situada num elegante bairro dos
Jardins, e a cena, a despeito de ir se tornando corriqueira,
causou enorme incômodo. Gritos, pequenos empurrões,
o uso ostensivo de lanternas (em plena luz do dia) em
busca de um suposto objeto atirado na grama, a
[10] obrigatoriedade de baixar os olhos… enfim, toda uma
engenharia da humilhação foi montada e bem ao lado
de gangorras e balanças. Para concluir o espetáculo,
três viaturas da polícia apareceram, com suas sirenes a
toda, e trataram de “liberar o local”.
[15] Diante dessas situações-limite é difícil reagir frente
à precariedade da cidadania de certos grupos ou da
segregação internalizada que nossos bairros mais
centrais carregam, silenciosamente. É nesses
momentos, quando a regra democrática é suspensa,
[20] que nos sentimos, de alguma maneira, inconfortáveis
diante do que mais parece uma aberta demonstração
de cumplicidade. Sim, pois por mais que o ritual fosse
claramente violento, a saída de todos nós que ali
estávamos foi de um profundo e constrangedor silêncio,
[25] inclusive desta que aqui escreve.
A violência do outro dói, mas dói também o
reconhecimento da impotência e da aceitação desse
tipo de ato, que já se transformou em “natural”.
O sentimento de culpa e de impotência nos assola e
[30] levaria a uma reação caso não fôssemos pessoas
acostumadas, a longa data, a esse tipo de socialização.
Construir sociedades plurais no lugar de defender
a homogeneidade; valorizar os espaços públicos em vez
de gradeá-los; ampliar espaços de encontro das
[35] diferenças, em vez de inibi-los, são motivações
que fazem parte de uma agenda cidadã e republicana.
Não se constrói cidadania entre muros, com a
disseminação de políticas de medo e abrindo mão de
responsabilidades públicas.
[40] Assumir o lugar de atores sociais é, de alguma
maneira, opor-se a saídas teleológicas, que definem o
futuro como um lugar sempre redentor. Os desafios estão
no presente, o que implica propor alternativas, pressionar
o Estado e agir coletivamente.
SCHWARCZ, Lilia Katri Moritz. Prática cotidiana da intimidação. Disponível em: http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoesrevista/a-culpa-e-sempre-dos-outros/ . Acesso em: 5 nov. 2014.
O uso da primeira pessoa, ao longo do texto, permite afirmar que