TESTEMUNHA DE MIM
Entrevista com Paula Sibilia
Quais são as principais mudanças trazidas pelas redes sociais na relação entre o Eu e o Outro?
O que eu analiso nos meus livros não é exatamente uma mudança trazida pelas redes sociais – ou por
qualquer outra tecnologia como os celulares ou a internet, por exemplo. Trata-se de uma transformação
histórica bem mais radical porque vem de mais longe, envolvendo um conjunto de fatores socioculturais,
[5] políticos e econômicos bastante complexos. Foram essas mudanças que levaram à invenção desses
dispositivos técnicos hoje tão popularizados. Ou seja: o fenômeno que estamos querendo compreender
não foi “causado” pelos dispositivos digitais, mas compreende as tecnologias como mais um fator que,
em muitos casos, é mais uma consequência do que uma causa.
E no que consiste essa transformação? Ela seria um desdobramento da “sociedade do espetáculo”
[10] antevista por Guy Debord?
É algo bastante complexo e denso, difícil de resumir em poucas palavras e até mesmo de mapear; mas
tem relação, sim, com o diagnóstico que Guy Debord apresentou (há mais de meio século!) em suas teses
sobre a sociedade do espetáculo. À luz de certos fenômenos já claramente vigentes naquela época, tais
como o consumismo e a forte influência dos meios audiovisuais (o cinema, a televisão e, sobretudo,
[15] a publicidade), esse artista e ativista francês vislumbrou uma transformação muito problemática nos
modos de viver. Claro que Guy Debord não poderia ter imaginado, em 1967, nem em seus piores
pesadelos, algo como Facebook. Contudo, a dinâmica que hoje vemos se generalizar em vários sentidos
já estava sendo configurada naqueles tempos; e foi o avanço desses movimentos históricos que levou
ao desenvolvimento dessas tecnologias que hoje usamos tão ativamente para nos relacionar conosco,
[20] com os outros e com o mundo de modos muito diferentes de como o fazíamos poucas décadas atrás.
Por quais transformações passou essa configuração histórica do “eu”?
Hoje vemos como se desenvolvem outros tipos de eu, bastante distantes daqueles que proliferaram, de
modo hegemônico, ao longo dos séculos 19 e 20 nas sociedades ocidentais. O cerne dessa subjetividade
moderna se localizava “dentro” de cada um, era tematizado como uma essência oculta e misteriosa,
[25] porém muito mais valiosa e verdadeira do que as vãs aparências. Com as transformações ocorridas nas
últimas décadas, esse eixo “interior” foi se deslocando para o campo do visível: passou a priorizar tudo
aquilo que se vê, o que os outros enxergam de nós. A imagem corporal se tornou primordial, daí toda a
relevância dada ao aspecto físico e ao fenômeno conhecido como “culto ao corpo”. Mas não se esgota
apenas nisso: também é fundamental que os atos e os comportamentos antes ocultos (ou considerados
[30] íntimos) agora se exponham publicamente, para que os outros sejam capazes de testemunhar, julgar e,
de preferência, celebrar ou legitimar.
E “o outro”? As redes sociais representam uma ameaça à alteridade?
Primeiro, creio importante destacar que não há nada de essencialmente negativo nesta transformação
histórica das subjetividades. Ao contrário até, pois não deixa de ser uma interessante conquista histórica
[35] esse deslocamento da interioridade psicológica moderna (afinal, e em vários sentidos, uma sorte
de prisão para o “eu”) em direção ao campo da sociabilidade. Contudo, como nas últimas décadas
também ocorreu uma feroz intensificação do capitalismo e uma generalização da lógica empresarial,
que – junto com a dinâmica própria do espetáculo – passou a impregnar todos os âmbitos da vida, essa
transformação histórica foi capturada pelo mercado. Não apenas no sentido literal, que é evidente,
[40] mas também em planos mais sutis, que envolvem os modos de lidar consigo, com os outros e com o
mundo de acordo com os códigos da mídia ou do marketing. Vemos, então, uma instrumentalização do
outro como mero público consumidor do eu, algo que tende a ignorar toda a riqueza potencialmente
transformadora da alteridade.
Qual é o papel das imagens nesse contexto?
[45] Não deixa de ser surpreendente que tenhamos adotado com tanto entusiasmo, com tanta rapidez
e eficácia, esses aparelhos com câmeras, telas e acesso aos outros a todo momento e em qualquer
lugar. São canais midiáticos que funcionam como vitrines para exibir e “compartilhar” o que fazemos,
gostamos, queremos, sonhamos, curtimos, etc. Os modos mais habituais de utilizá-los é praticando uma
certa “edição”, uma sorte de performance de um “personagem real” que fazemos de nós mesmos,
[50] quase sempre comandada pelos códigos do marketing e pela estética da publicidade. Essas estratégias
podem ser mais ou menos bem-sucedidas, mas de todo modo são tentativas de solicitar a aprovação
dos outros, bem decalcadas na lógica do mercado e do espetáculo.
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Com as transformações ocorridas nas últimas décadas, esse eixo “interior” foi se deslocando para o campo
do visível: passou a priorizar tudo aquilo que se vê, o que os outros enxergam de nós (l. 25-27)
Mantendo o sentido original, os dois-pontos podem ser substituídos pela seguinte expressão: