Questões
Você receberá a resposta de cada questão assim que responder, e NÃO terá estatísticas ao finalizar sua prova.
Responda essa prova como se fosse um simulado, e veja suas estatísticas no final, clique em Modo Prova
Leia o conto “Retirantes”, de Humberto de Campos, para responder à questão.
Retirantes
Humberto de Campos, 1932
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a
continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os
lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas
combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma
[5] tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se
ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a
monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e
verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o
vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os
[10] arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse
castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria,
gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem
revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à
[15] agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens
piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre,
sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres
retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se
[20] para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em
breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano
com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas
semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a
[25] companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado
pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os
ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando,
para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da
[30] várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no
cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num voo
rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes
apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da
[35] Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor
empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas,
junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que
lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos
[40] fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem
eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os
braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num
trabalho mecânico e diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu,
[45] empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve
cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o
defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a
cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos
pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de
[50] roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr
desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de
retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do
caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia
[55] alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a
boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da
filha...
CAMPOS, Humberto [1932]. Retirantes. Disponível em: <http://www.projetolivrolivre.com/Humberto%20de%20Campos%20- %20O%20Monstro%20e%20outros%20contos%20-%20Iba%20Mendes.pdf>. Acesso: 18 ago. 2016. Adaptado
A respeito do conto “Retirantes”, analise as afirmativas.
I – Humberto de Campos deflagra o cenário inóspito típico das regiões miseráveis e de solo improdutíveis do Brasil.
II – O conto é narrado em terceira pessoa por um narrador onisciente que parece penetrar nos pensamentos da protagonista.
III – O texto caracteriza-se por uma linguagem descuidada, repleta de vulgarismos e jargões urbanos.
IV – A presença do discurso direto demarca as constantes intromissões do narrador cedendo à personagem a palavra.
Assinale a alternativa CORRETA.
Leia o conto “Retirantes”, de Humberto de Campos, para responder à questão.
Retirantes
Humberto de Campos, 1932
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a
continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os
lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas
combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma
[5] tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se
ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a
monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e
verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o
vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os
[10] arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse
castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria,
gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem
revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à
[15] agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens
piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre,
sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres
retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se
[20] para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em
breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano
com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas
semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a
[25] companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado
pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os
ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando,
para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da
[30] várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no
cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num voo
rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes
apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da
[35] Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor
empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas,
junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que
lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos
[40] fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem
eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os
braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num
trabalho mecânico e diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu,
[45] empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve
cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o
defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a
cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos
pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de
[50] roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr
desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de
retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do
caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia
[55] alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a
boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da
filha...
CAMPOS, Humberto [1932]. Retirantes. Disponível em: <http://www.projetolivrolivre.com/Humberto%20de%20Campos%20- %20O%20Monstro%20e%20outros%20contos%20-%20Iba%20Mendes.pdf>. Acesso: 18 ago. 2016. Adaptado
Releia os dois últimos parágrafos (linhas 53 a 58) do texto “Retirantes”. Por meio deles, Humberto de Campos nos permite inferir que quando a personagem recupera os sentidos:
Leia o conto “Retirantes”, de Humberto de Campos, para responder à questão.
Retirantes
Humberto de Campos, 1932
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a
continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os
lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas
combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma
[5] tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se
ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a
monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e
verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o
vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os
[10] arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse
castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria,
gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem
revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à
[15] agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens
piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre,
sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres
retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se
[20] para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em
breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano
com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas
semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a
[25] companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado
pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os
ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando,
para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da
[30] várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no
cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num voo
rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes
apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da
[35] Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor
empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas,
junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que
lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos
[40] fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem
eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os
braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num
trabalho mecânico e diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu,
[45] empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve
cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o
defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a
cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos
pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de
[50] roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr
desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de
retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do
caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia
[55] alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a
boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da
filha...
CAMPOS, Humberto [1932]. Retirantes. Disponível em: <http://www.projetolivrolivre.com/Humberto%20de%20Campos%20- %20O%20Monstro%20e%20outros%20contos%20-%20Iba%20Mendes.pdf>. Acesso: 18 ago. 2016. Adaptado
Examine o excerto a seguir: “Desde que, com a continuação das ventanias doidas após o dia de São José...” (linhas 1 e 2). O articulador em destaque exprime a ideia de:
Leia o conto “Retirantes”, de Humberto de Campos, para responder à questão.
Retirantes
Humberto de Campos, 1932
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a
continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os
lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral. Pelas várzeas
combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma
[5] tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se
ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a
monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e
verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o
vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os
[10] arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse
castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria,
gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem
revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à
[15] agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens
piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre,
sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres
retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se
[20] para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em
breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano
com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas
semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a
[25] companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado
pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os
ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando,
para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da
[30] várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no
cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num voo
rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes
apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da
[35] Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor
empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas,
junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que
lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos
[40] fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem
eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os
braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num
trabalho mecânico e diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu,
[45] empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve
cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o
defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a
cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos
pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de
[50] roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr
desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de
retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do
caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia
[55] alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a
boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da
filha...
CAMPOS, Humberto [1932]. Retirantes. Disponível em: <http://www.projetolivrolivre.com/Humberto%20de%20Campos%20- %20O%20Monstro%20e%20outros%20contos%20-%20Iba%20Mendes.pdf>. Acesso: 18 ago. 2016. Adaptado
No fragmento de texto “Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem revolta a marcha da Inimiga. ” (linhas 13 e 14), a palavra em negrito indica:
A seguir, leia o texto “Paisagem do Capibaribe”, extraído do poema “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto, para responder à questão
Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão humilde e espesso.
[5] Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
[10] coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
[15] são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
[20] que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
[25] É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
[30] Sabia de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
[35] (onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
[40] E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
[45] vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
[50] Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
[55] de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
[60] da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
[65] que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
[70] Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
[75] como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 109-110.
De acordo com o poema de João Cabral de Melo Neto, pode-se afirmar que:
( ) o poeta efetiva a sua participação imprimindo o discurso direto e várias indagações.
( ) a presença do verbo “fluir” (linha 2) dá voz à experiência do rio e enriquece a narrativa.
( ) a experiência pormenorizada do rio resgata a imagem de uma cartografia estigmatizada.
( ) o rio Capibaribe movimenta-se, poeticamente, e assemelha-se a um animal desprezado.
Analise as proposições acima, coloque V para as verdadeiras e F para as falsas. Agora, e marque a alternativa que apresenta a sequência CORRETA.
A seguir, leia o texto “Paisagem do Capibaribe”, extraído do poema “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto, para responder à questão
Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão humilde e espesso.
[5] Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
[10] coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
[15] são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
[20] que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
[25] É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
[30] Sabia de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
[35] (onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
[40] E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
[45] vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
[50] Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
[55] de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
[60] da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
[65] que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
[70] Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
[75] como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 109-110.
João Cabral de Melo Neto é conhecido por usar metáforas e analogias surpreendentes em suas obras poéticas. A partir dessa informação, releia a terceira e quarta estrofes de “Paisagem do Capibaribe” (linhas 13 a 27) e marque a resposta CORRETA.