Estorvo (fragmento)
Vejo tumulto defronte ao edifício do meu amigo. Aglomeração, um camburão, duas joaninhas, um rabecão, vários carros de reportagem, guardas desviando o trânsito. No meio do povo, compreendo que houve um crime, alguém morreu esfaqueado e estrangulado. Vem chegando a sirene de um segundo camburão, e o empurra-empurra acaba por me levar ao miolo do acontecimento. Uma corda vermelha isola a calçada do velho prédio, formando uma espécie de ringue. A televisão entrevista o zelador sob a marquise da portaria. Deve estar ruim de filmar, pois o zelador olha para o chão e não fala direito, parece um condenado. Penso que é ele o criminoso, mas em seguida me convenço de que está somente muito envergonhado pelo seu edifício. O repórter pergunta se a vítima costumava receber rapazes, e o zelador faz sim com a cabeça, mais confessando que assentindo. A entrevista é prejudicada por uma baixinha com cara de índia e lenço na cabeça, que se desvencilha de um policial e investe contra o zelador, gritando "diga que conhece meu filho, miserável!". O policial levanta a índia baixinha e deposita-a fora do cordão de isolamento. Ela passa outra vez sob o cordão e agora se dirige ao público. Diz "não tem televisão aí?" e diz "ninguém vai me entrevistar?". Um rapaz que se apresenta como repórter do Diário Vigilante pergunta o que fazia o suspeito no local do crime. Ela diz "que suspeito o quê" e "que local do crime o quê", e diz "meu filho veio me ver, foi detido entrando no prédio, se fosse suspeito estaria fugindo", e diz "onde é que já se viu suspeito fugir para dentro?". Sem mais nem mais, começo a ficar a favor da mãe índia. O do Diário Vigilante vai fazer outra pergunta, mas ela o interrompe e diz que trabalha no 204 há quinze anos, que todo mundo sabe quem ela é, que aquele miserável ali conhece o filho dela e não o defende porque tem preconceito de cor. Vai atacar denovo o zelador, mas é suspensa pelo policial. Outro repórter de tevê indaga do zelador se a vítima era homossexual. O zelador resmunga "isso aí eu não sei porque nunca vi". A índia responde à Rádio Primazia que prenderam o filho porque ele estava sem documento. Diz "meu filho estava voltando da praia, não é crime ir na praia, ninguém vai na praia com carteira de trabalho metida no calção". Um sujeito atrás de mim diz que também é de jornal e pergunta “afinal a bichona era artista ou o quê?\'\'. Ela responde "a bichona sei lá, parece que era professor de ginástica". Aproxima-se o repórter da TV Promontório dizendo "ouvimos também a mãe do principal suspeito". Aí a índia perde a razão, agarra as lapelas do repórter e desata a chorar no microfone e berrar "ele não é criminoso!, meu filho é um moço decente!", mas o cameraman, que está trepado no capô da camionete, grita "não valeu, não gravou nada, troca a 2 bateria!". A índia para de chorar, olha para o setor da imprensa e diz "imagine meu filho, que até é doente, estrangulando um professor de ginástica". Volta o repórter da TV Promontório e pede-lhe para repetir a fala anterior, que ele achou bem forte.
BUARQUE, Chico. Estorvo. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
A realização de uma entrevista narrada no texto II relativiza a ideia de não ficção que há no texto jornalístico.
Identifique a passagem que melhor permite essa afirmação