TEXTO I
[1] Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi transformando em
repugnância completa. O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez
de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles. Estela amava-a
menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha
[5] convicção de não ser seu pai.
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco
anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe
pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta ideia com escrupulosa repugnância. Continuava a
odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obrigação em que ele se colocou de não servir-se dela, a
[10] responsabilidade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa
infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela
perjura, foi ter ao quarto dela.
A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama. "Devia voltar!... pensou.
Não lhe ficava bem aquilo!..." Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a
[15] contemplá-la no seu desejo.
Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando
com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não
pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se,
tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que
[20] continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.
Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais
cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para
resistir ao desejo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve ânimo de
[25] dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.
Oh! como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade.
(AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1983).
Sobre o uso da vírgula, leia as regras entre parênteses e assinale V para as alternativas verdadeiras e F para as falsas.
( ) “Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta ideia com escrupulosa repugnância” (O uso da vírgula se justifica, por se tratar de uma oração coordenada sindética adversativa).
( ) “Não teve ânimo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.” (A vírgula está inadequada, pois está sendo usada antes da conjunção aditiva e).
( ) “...o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. (O uso da vírgula se justifica, porque foi utilizada para separar oração subordinada adjetiva explicativa)
( ) “E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo. (As vírgulas foram usadas para separar orações intercaladas)
Assinale a alternativa correta