TEXTO:
Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo — um mundo sem literatura teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal.
Muitas vezes me ocorre, nas feiras de livros ou
nas livrarias, que um senhor se aproxime de mim com
um livro meu nas mãos e me peça para autografá-lo,
especificando: é para a minha mulher, ou minha filha,
[5] ou minha irmã, ou minha mãe; ela, ou elas, são grandes
leitoras e são apaixonadas por literatura. E eu lhe
pergunto, de imediato: “E o senhor? Não gosta de ler?”
A resposta chega pontual, quase sempre: “Bem,
sim, é claro que gosto, mas sou uma pessoa muito
[10] ocupada, sabe como é.” Sim, sei muito bem, porque
ouvi essa explicação dezenas de vezes: esse senhor,
esses milhares de senhores iguais a ele têm
tantas coisas importantes, tantas obrigações e
responsabilidades na vida, que não podem desperdiçar
[15] seu tempo precioso passando horas e horas imersos
num romance, num livro de poemas ou num ensaio
literário. Segundo essa concepção, a literatura é uma
atividade da qual se pode prescindir, um entretenimento
elevado e útil para cultivar a sensibilidade e as boas
[20] maneiras, um ornamento que se podem permitir os que
dispõem de tempo livre para a recreação, e que seria
necessário computar na categoria dos esportes, do
cinema, do bridge ou do xadrez, mas que pode ser
sacrificado sem escrúpulos no momento de estabelecer
[25] uma escala de prioridades nos afazeres e compromissos
indispensáveis da luta pela vida.
Nada, além que bons romances, ensina a ver nas
diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio
humano e a valorizá-las como uma manifestação de sua
[30] múltipla criatividade. Ler boa literatura é divertir-se, com
certeza; mas também aprender, dessa maneira direta e
intensa que é a da experiência vivida através das obras
de ficção, o que somos e como somos em nossa
integridade humana, com os nossos atos, os nossos
[35] sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das
relações que nos ligam aos outros, em nossa presença
pública e no segredo de nossa consciência, essa soma
extremamente complexa de verdades contraditórias —
como as chamava Isaiah Berlin — de que é feita a
[40] condição humana.
Esse conhecimento totalizador e imediato do ser
humano, hoje se encontra apenas no romance. Nem
mesmo os outros ramos das disciplinas humanistas —
como a filosofia, a psicologia, a história ou as artes —
[45] puderam preservar essa visão integradora e um discurso
acessível porque, por trás da pressão irresistível da
cancerosa divisão e fragmentação do conhecimento,
acabaram por sucumbir também às imposições da
especialização, por isolar-se em territórios cada vez mais
[50] segmentados e técnicos, cujas ideias e linguagens estão
fora do alcance da mulher e do homem comuns. Não é
nem pode ser o caso da literatura, embora alguns críticos
e teóricos se empenhem em transformá-la em uma
ciência, porque a ficção não existe para investigar uma
[55] área determinada da experiência, mas para enriquecer
de maneira imaginária a vida, a de todos, a vida que não
pode ser desmembrada, desarticulada, reduzida a
esquemas ou fórmulas, sem que desapareça.
LLOSA, Mário Vargas. Mojinho na cabeça polonesa. Disponível em: < http://www.revistapiaui.com.br/edicao_37/artigo_1149/ Miojinho_na_cabeca_polonesa_.aspx>. Acesso em: 30 ago. 2010.
Para o autor do texto, “o senhor” que se aproxima com um de seus livros para ser autografado