AS BENDITAS FILAS
O homenzinho que estava à minha frente na fila
do sabão de coco dobrou o jornal, voltou-se para
mim e disse:
– Não sei por que os jornais falam tanto contra
[5] as filas. A fila não é um problema, a fila é uma
solução. Lembro-me de que nos meus tempos de
ginásio, quando as entradas para as matinês
custavam trezentos réis, era aquela luta ombro a ombro
nos guichês do Apolo! Venciam os guris mais fortes,
[10] os grandalhões, os “prevalecidos”, como a gente
dizia. Era o domínio da força bruta, o fascismo, meu
caro senhor! Veja agora que beleza, olhe só esta fila:
não é o grandalhão, socialmente falando, que chega
primeiro ao balcão; é o que tem direito a isso,
[15] conforme o seu lugar na fila. Olhe, eu sou um
barnabé, pois lá atrás está a cunhada do chefe, que
até me cumprimentou, mas “conhece o seu lugar”,
compreende? Que é isso? Legalidade, ordem,
democracia. Democracia, meu caro senhor. Não, a
[20] fila não é um problema, a fila é o orgulho da nossa
civilização. Olhe, aquele velhinho que chegou por
último e que se colocou atrás da preta velha, sabem
quem é? Não sei, mas deve ser troço na vida...
Como eu não dissesse nada, o homenzinho
[25] prosseguiu:
– E depois, não é só isso. Se não fossem as filas,
como poderíamos calmamente ler os jornais do dia
(em casa é impossível, as crianças berrando, a mulher
alegando), como poderíamos, dizia eu, ler
[30] calmamente os jornais do dia, nos inteirarmos dos
problemas nacionais e internacionais, e refletir
ponderadamente sobre as suas soluções? A fila é
propícia à meditação e ao estudo. Ao estudo, sim.
Disse isso porque um tio meu, que tem fama de gira,
[35] aprendeu grego durante a fila do leite. Está vendo?
Se todos fizessem como ele, poderiam, trazendo um
livro para a fila, aprofundar seus conhecimentos,
cultivar seu espírito, em vez de estar a bradar contra
o Sistema que lhe proporciona esses úteis lazeres.
[40] Eu continuava a não dizer nada, porque acabara
de ler, no meu jornal, a morte de Janjão. Era mais
velho do que eu, não muito. E isso me dava a
inquietante impressão de que eu já havia avançado
mais um lugar na fila...
QUINTANA, Mário. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p.708.
Em “...eu já havia avançado mais...” (linhas 43-44) a locução verbal está flexionada no