O texto desta prova consta, como prefácio, da 2ª edição do romance Janelas Fechadas, do maranhense Josué Montello, publicado pela primeira vez em 1941. Foi escrito por Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), que compõe uma crítica na qual desenvolve ideias originais, como uma aproximação entre Benzinho, protagonista do romance de Montello, e Capitu.
Texto
Uma Capitu Nordestina
[1] Cada novo livro de Josué Montello é um
acontecimento em nossas letras. Sua
fecundidade literária, aliás [...], nunca se fez
com sacrifício de seu esmero na expressão
[5] verbal. Pelo contrário, esse esmero atingiu seu
alto grau de perfeição com Aleluia, mas de forma
alguma se esgotou na sua busca de concisão,
outra meta constante em sua estilística pessoal.
Ainda agora, o que o levou a reeditar esse quase
[10] primeiro livro de sua “maturidade literária”,
como ele próprio assinalou, foi a preocupação
estritamente estilística e não estrutural, junto ao
cuidado de preservar o tipo de sua personagem
central, a jovem Benzinho, e o ambiente
[15] maranhense de todos os seus romances.
Aliás, se a paisagem maranhense desse
romance nada tem a ver com a rude paisagem
tipicamente nordestina dos romances de um José
Lins do Rego ou de um José Américo, o caráter
[20] da jovem Maria de Lourdes Silva, apelidada
Benzinho desde a infância, nada tem a ver com o
tipo genuíno das jovens nordestinas, como aliás
dos homens da região, onde a firmeza de caráter
é a expressão mais representativa do
[25] temperamento nordestino, pela supremacia dos
valores morais sobre os valores eróticos e
sobretudo hedonísticos. Sendo esse romance dos
seus vinte anos uma tentativa quase
subconsciente de reação antirromântica, não é
[30] de espantar que essa adolescente dos subúrbios
de São Luís, o bairro do Anil, se pareça mais com
a sofisticada carioca Capitu do que com qualquer
das Inocências, ou Moreninhas do romantismo de
sua época.
[35] Benzinho, pela mão feiticeira de seu criador
literário, que, aliás, colheu o modelo na vida real,
passa ao longo do romance sem que o autor se
aprofunde em qualquer análise psicológica da
passagem de uma condição de vítima inocente à
[40] de uma representante típica, embora
inconsciente, de um fenômeno sociológico, o da
ascensão social, que, ao contrário do tipo
habitual da mulher nordestina, coloca
inteiramente de lado as razões do coração ou da
[45] sensualidade para se dirigir exclusivamente pela
razão. E pelo raciocínio rigorosamente
interesseiro de promoção social ou de influência
exterior. Quando, pela primeira vez, se entrega a
um quase desconhecido, é levada
[50] exclusivamente por uma frase eventual de sua
mãe, que lhe confidenciara a vontade de ter um
neto. Pela segunda vez, o que a levou a fazer o
mesmo foi simplesmente a ambição de casar
com um vizinho rico.
[55] Em ambos os casos, absoluta ausência de
sentimento passional e, no fundo, preocupações
de tipo masculino mais que feminino. Não é a
preocupação feminista de emancipação de seu
sexo, mas a passividade em face de um desejo
[60] materno e o impulso masculino de ambição
social.
Aliás, na criação da personagem central
dessa jovem Capitu nordestina, tocava Josué
Montello em um fenômeno típico das sociedades
[65] modernas: a confusão ou o desencontro entre os
sexos, em sua respectiva natureza biológica e
psicológica. Já Aristóteles verificava haver
homens de alma feminina e vice-versa. Assim
como não há, entre as várias idades do ser
[70] humano, limites claros e positivos, assim
também não existe, entre os sexos, uma
psicologia respectivamente incompatível. O que é
preciso é não confundir o desencontro de
psicologias com a confusão, ou antes, a inversão
[75] das psicologias. Uma coisa é um homem de alma
feminina e outra um homem efeminado.
Naqueles, o que vemos é o predomínio de certas
qualidades, que normalmente distinguem a alma
feminina, sem que, entretanto, essa troca
[80] perturbe seus valores máximos.
(Introdução. ATHAYDE, Tristão de. In: MONTELLO,
Josué. Romances e novelas. V. 1. P. 109-111.)
Considere a expressão “qualquer das Inocências, ou Moreninhas do romantismo de sua época” (linhas 32-34):
I. O crítico, nesta passagem do texto, refere-se diretamente aos romances Inocência (de Visconde de Taunay) e A Moreninha (de Joaquim Manuel de Macedo) e indiretamente às personagens do mesmo nome.
II. O que o crítico chama de “romantismo de sua época” (época de Josué Montello) é umRomantismo tardio, fora de época; extemporâneo.
III. O pronome “qualquer”, no excerto transcrito, equivale a “nenhuma”.
Está correto o que se diz apenas em