TEXTO II
Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade
São Paulo, 10 novembro 1924
[85] Meu caro Carlos Drummond
Já começava a desesperar da minha
resposta? Meu Deus! Comecei esta carta com
pretensão... Em todo caso de mim não
desespere nunca. Eu respondo sempre aos
[90] amigos. Às vezes demoro um pouco, mas
nunca por desleixo ou esquecimento. As
solicitações da vida é que são muitas e as da
minha agora muitíssimas. Atualmente as
minhas preocupações são as seguintes:
[95] escrever dísticos estrambóticos e divertidos
prum baile futurista que vai haver na alta
roda daqui (a que não pertenço, aliás).
Escolher vestidos extravagantes mas bonitos
pra mulher dum amigo que vai ao tal baile. E
[100] escrever uma conferência sem valor mas que
divirta pra uma festa que damos, o pianista
Sousa Lima e eu, no Automóvel Clube, sexta-
feira que vem. São as minhas grandes
preocupações do momento. Serão
[105] desprezíveis pra qualquer idiota antiquado,
aguado e simbolista. Pra mim são tão
importantes como escrever um romance ou
sofrer uma recusa de amor. Tudo está em
gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito
[110] feliz de viver a vida: é ter espírito religioso.
Explico melhor: não se trata de ter espírito
católico ou budista, trata-se de ter espírito
religioso pra com a vida, isto é, viver com
religião a vida. Eu sempre gostei muito de
[115] viver, de maneira que nenhuma manifestação
da vida me é indiferente. [...] Eu tanto
aprecio uma boa caminhada a pé até o alto
da Lapa como uma tocata de Bach e ponho
tanto entusiasmo e carinho no escrever um
[120] dístico que vai figurar nas paredes dum
bailarico e morrer no lixo depois como um
romance a que darei a impassível eternidade
da impressão. Eu acho, Drummond,
pensando bem, que o que falta pra certos
[125] moços de tendência modernista brasileiros é
isso: gostarem de verdade da vida. Como não
atinaram com o verdadeiro jeito de gostar da
vida, cansam-se, ficam tristes ou então
fingem alegria o que ainda é mais idiota do
[130] que ser sinceramente triste. Eu não posso
compreender um homem de gabinete e vocês
todos, do Rio, de Minas, do Norte me
parecem um pouco de gabinete demais. Meu
Deus! se eu estivesse nessas terras
[135] admiráveis em que vocês vivem, com que
gosto, com que religião eu caminharia
sempre pelo mesmo caminho (não há mesmo
caminho pros amantes da Terra) em longas
caminhadas! Que diabo! estudar é bom e eu
[140] também estudo. Mas depois do estudo do
livro e do gozo do livro, ou antes vem o
estudo e gozo da ação corporal. [...] um dos
desastres que impedem a felicidade, que é
naturalidade, de vocês está aí: em casa
[145] lendo, redação de jornal, café com amigos
sobre tal livro, tal escritor, escrever coisas
depois, talvez cinemas e depois farra com
mulheres. Isso não é vida que se leve! Isso é
vício. [...] Veja bem, eu não ataco nem nego
[150] a erudição e a civilização, como fez o Osvaldo
num momento de erro, ao contrário respeito-
as e cá tenho também (comedidamente,
muito comedidamente) as minhas fichinhas
de leitura. Mas vivo tudo. [...] E então parar
[155] e puxar conversa com gente chamada baixa e
ignorante! Como é gostoso! Fique sabendo
duma coisa, se não sabe ainda: é com essa
gente que se aprende a sentir e não com a
inteligência e a erudição livresca. Eles é que
[160] conservam o espírito religioso da vida e
fazem tudo sublimemente num ritual
esclarecido de religião. [...] li seu artigo. Está
muito bom. Mas nele ressalta bem o que falta
a você — espírito de mocidade brasileira. Está
[165] bom demais pra você. Quero dizer: está
muito bem pensante, refletido, sereno,
acomodado, justo, principalmente isso,
escrito com grande espírito de justiça. Pois eu
preferia que você dissesse asneiras,
[170] injustiças, maldades moças que nunca
fizeram mal a quem sofre delas. Você é uma
sólida inteligência e já muito bem mobiliada...
à francesa. Com toda a abundância do meu
coração eu lhe digo que isso é uma pena. Eu
[175] sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil,
junto comigo.
Um abraço do
Mário de Andrade.
(Texto adaptado)
Sobre suas preocupações do momento, diz Mário de Andrade que elas Serão desprezíveis pra qualquer idiota antiquado, aguado e simbolista. Para ele, são tão importantes como escrever um romance ou sofrer uma recusa de amor (Linhas 104-108).
Assinale a única afirmativa NÃO condizente com as ideias do texto II.