TEXTO I
BATALHA SEM HERÓIS
Não via o futuro. E deixaram criminosamente para a posteridade esse drama econômico que é a realidade que se atravessa. O tal ciclo do chamado ouro negro deixou, apenas, pauperismo e miséria. Decadência, não, porque nunca houve progresso material e espiritual, cujos escombros pudessem ainda atestar a prosperidade e a grandeza dessa região.
Otávio Vieira Passos
Junto àquela vetusta mangueira, à margem direita frente à escadaria do porto de M., fiquei absorto olhando a cidade pequena e humilde, esquecida do mundo, réstea de civilização ante a pletora de mata e água. Quatro ruas talvez, de casas pobres, espaçadas. Retrato fiel, ora sem retoque, ora mais carregado nas tintas, das outras cidades amazonenses, à beira dos barracos, em atitude de querer fugir, procurar novas paisagens onde haja existência, onde se sinta o palpitar de vida; ou, quem sabe, ajoelhadas humildemente, submissas ao poderio da selva e do rio, em sentido de inferioridade ante o soberano. Cidade ou vila? Confundem-se todas elas. Que resta do passado? Nada. Vivem a rememorar o que foram e se esquecem do que são... Sim, esquecem que são fragmentos dum ciclo perdido...
Serenamente calmo, o Madeira. Nem maresia havia. Silenciosas desciam suas águas barrentas carregando balseiros enfeitados de mamurés ou respingados de branco das gaivotas que, quando em quando, alcançavam voos para o céu, revoluteavam por alguns segundos o lençol líquido, soltando piadas tristes, e, inesperadamente, em pique, sobre o rio, pescavam com o bico algum peixe descuidado, próximo à superfície.
Paisagem de sempre, sem quase variação. Mataria cerrada e o impressionante caudal terroso iluminado bem fraco, nas noites pobres de estrelas, pelo brilho dos vaga-lumes em festa de luz de um azul suave.
Tinha-se impressão que jamais aquelas águas haviam perdido a postura do deslizar manso sob o paracpac rítmico dos remos nas montarias, de encontro ao casco, descendo ou subindo a corrente. Águas apáticas às lágrimas derramadas em seu seio. Águas que refletiram fisionomias angustiadas por sobre o espelho líquido, sempre a correr... Águas que se transformam em esquifes para muitos corpos caídos em meio da batalha, de homens prenhes de esperanças vãs. Águas que foram bandeiras e túmulos, confidentes e inimigas, caminhos e degredos...
Que adianta João Mulato deixar-se empolgar pela lembrança do sertão, debaixo da sombra amena da mangueira? Sentir dentro do peito o ressoar dos cascos dos cavalos de encontro ao solo seco do nordeste, nas vaquejadas, ou com o ouvir no imo d’alma as emboladas e os desafios cantados nos terreiros das fazendas, sob o luar? Recordar as secas terríveis? – pra quê? As estradas transbordando de fugitivos em busca de trabalho, desviando-se da fome e sempre açoitados pela morte? Tudo tão longe... Nômades forçados pela natureza. Via-se sozinho naquele instante, sem saber o destino de seus companheiros sepultados pelos rios sem-fim da Amazônia. Muitos deles, aos milhares, foram comidos pelas doenças da região, nos seringais afora. Cada corpo tombado era um marco registrado na época de mentiras, de ludibriações, de assassinos em massa, numa batalha inglória para uns e vantajosa para os oportunistas.
Vítima das balelas espalhadas pelo Ceará, João Mulato quedou-se olhando para as águas do Madeira a descerem indiferentes às vidas perdidas em torno de seu curso...
As estradas empoeiradas do nordeste engoliram muitos homens sem destino, fugindo da seca. A vida ia se eliminando gradativamente, com o decorrer dos dias. Restavam árvores espalhadas despidas de folhas, animais mortos pelas caatingas, em postura de desespero e, como contraste naquele ambiente de devastação e miséria, palmatórias, mandacarus, xique-xiques e facheiros explodiam de seiva: antítese do mundo morto sob o céu azul sem nuvens.
Encobrindo todo esse panorama entristecedor, as hospedarias das pequenas cidades e lugarejos de seu Estado estavam coalhadas de fotogravuras de homens fortes, vestidos com decência, calçados, de “sombreiros” grandes, empunhando uma faca de seringa, palmilhando picadas bem-acabadas, onde a “Havea brasiliensis” verdejante sobrepunha-se às demais árvores, vendo-se fincadas ao lenho pequenas tigelas abarrotadas de leite que se transformava em dinheiro escasso naquela região. Amazônia! Palavra mágica. Faria de todos os soldados da borracha, ricaços e heróis. Ricaços pela felicidade inconcebível de converter as pelas de borracha em células Floriano, e heróis, por estarem trabalhando em benefício da pátria, das nações livres, contra a tirania do alemão que queria sozinho governar o mundo, obrigando aos demais povos oprimido a seguir sua voz de comando. Amazônia, maravilhosa, eterno El Dorado das Mil e Uma Noites.
As radiodifusoras transmitiam do asfalto do Rio programações sobre o movimento da grande “vanguarda da retaguarda”. Verborreia bonita. Galos cacarejavam. Pássaros, em orquestração divina, entoavam canções de incentivo aos seringueiros, “trabalhadores anônimos”, coadjuvados pelos irmãos de luta que iam chegando do nordeste para sangrar a árvore da seringa e produzir o látex necessário às nações unidas, para a vitória final. Não se ouvia, nas transmissões radiofônicas da vida no seringal a melodia do carapanã, as orquestras sinfônicas regidas pelos sapos, nas lagoas deixadas pelas chuvas, ou nos pantanais o estertor das vítimas do impaludismo e de outras enfermidades. Não se escutava a luta árdua do seringueiro desnutrido, acordando madrugada ainda, pondo a poronga à cabeça e o terçado à cinta, tomando o balde e da faca e atravessando marizais, subindo ou descendo ladeiras, a enfrentar toda a traição da mata, para cortar a seringueira. Não se dizia que o produto de tanto sacrifício mal dava para comprar o açúcar, a banha, o tabaco, a alfacina, chegando ao “centro” por um preço absurdo, enquanto os SERINGALISTAS, de Belém e Manaus, viviam nababescamente, apresentando estratégia de mesa de cafés, ou segredando amor aos ouvidos das amantes ávidas de presentes...
“Manadas” de homens, mulheres e crianças, vestindo blusão de riscado, calças de mescla e
alpercatas, eram vomitados das gaiolas, no Róduei. Daí transportavam-nos para a Hospedaria do Pensador, plantada no areal branco da Estrada de Flores, a fim de serem distribuídos, mais tarde, pelos altos rios.
À noite, sobressaindo do fundo branco, à margem da estrada, viam-se os casarões de cujo interior espargiam vozes de várias tonalidades, entoando emboladas, sambas, canções de ninar. E, perdidos naquela areia alva, casais faziam confidências e choravam suas mágoas, lágrimas eram bebidas pela areia, o sangue do primeiro amor tingia as florzinhas brancas nascidas na relva macia, perdidas pelos lugares esconsos...
Naquela Hospedaria, longe da cidade, João Mulato possuíra Cremilda. 16 anos. Miudinha. Noite bem escura. O igarapé passava ao fundo dos barracões, saltando pedras. Os dois foram se distanciando dos demais. Sob uma ingazeira se sentaram. Falaram do Ceará; da seca; dos sofrimentos por que tinham passado. Até a Hospedaria, era o presente. Da Hospedaria em diante, o futuro, o desconhecido. Cremilda com o corpo de criança e alma de mulher, aconchegou-se a João Mulato e cicicou:
- Tenho medo!!
- De quê?
- De sofrê mais. Da minha famia só resta eu. Todos ficou no caminho. Um irmão que vinha com nós, com oito ano, morreu de diarreia. Foi jogado no Amazonas. – Mais um! – gritou todos. Eu não chorei. Pra quê? Vi o corpinho do Chico ir diminuindo, diminuindo e se perdê na distança...
O tocar daqueles seios ainda duros, de encontro ao seu corpo faminto, fez João Mulato olvidar-se de todo o rosário de sofrimentos e amar Cremilda sobre a areia branca e fria, que os uniu para sempre...
- Onde está a facilidade de ganhar dinheiro? – arguiu João Mulato a si mesmo. Chegara pobre ao seringal, com a mulher. Trabalhavam sem descanso. A guerra terminara. Não conseguira saldo. A família sempre aumentando. Quatro filhos. A vida cada vez mais cara. Os produtos sem valor. Tudo promessa.
João Mulato embarcou na montaria, subiu o Madeira em demanda do tapiri, para trabalhar, trabalhar muito e um dia regressar ao Ceará como um bom soldado da borracha, se sua ossada não ficasse plantada por este mundo de mata, água e lendas milenárias...
* * *
E sob aquela mangueira da cidade de M. pensava eu sobre as novas mentiras. Novos salvamentos da Amazônia tufando os bolsos dos salvadores. Por fora das comissões, as enchentes, o impaludismo, a disenteria, a desnutrição, o atraso, o analfabetismo, a economia extrativista, a falta de compradores dos produtos vão desvalorizando a Amazônia, enquanto os políticos a salvam burocraticamente.
(CASTRO, Aristófanes. “Batalha sem heróis”. In: Antologia do conto do amazonas. 2 ed. Manaus: Valer, 2009)
TEXTO II
TRISTE PARTIDA
Patativa do Assaré
Meu Deus, meu Deus. . .
Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
Ai, ai, ai, ai
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Meu Deus, meu Deus
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
Ai, ai, ai, ai
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Meu Deus, meu Deus
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois a barra não tem
Ai, ai, ai, ai
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Meu Deus, meu Deus
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
Ai, ai, ai, ai
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
Meu Deus, meu Deus
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
Ai, ai, ai, ai
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Meu Deus, meu Deus
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamos a São Paulo
Viver ou morrer
Ai, ai, ai, ai
Nós vamos a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Meu Deus, meu Deus
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Cá e pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
Ai, ai, ai, ai
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Meu Deus, meu Deus
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
Ai, ai, ai, ai
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrível
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natá
Ai, ai, ai, ai
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Meu Deus, meu Deus
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
Ai, ai, ai, ai
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Meu Deus, meu Deus
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Seu filho choroso
Exclama a dizer
Ai, ai, ai, ai
[. . .]
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo azul
Meu Deus, meu Deus
O pai, pesaroso
Nos filho pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
Ai, ai, ai, ai
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Meu Deus, meu Deus
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Ai, ai, ai, ai
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Meu Deus, meu Deus
Lhe bate no peito
Saudade lhe molho
E as água nos óio
Começa a cair
Ai, ai, ai, ai
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
Meu Deus, meu Deus
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
À lama e o paú
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai
Analise sintaticamente o pronome LHE, sublinhado na estrutura textual abaixo, para, em seguida, responder ao que se pede.
[...] Mas nada de chuva/ Tá tudo sem jeito/ Lhe foge de peito/ O resto da fé [...] (Texto II)
Assinale a opção que contenha a frase em que é apresentada expressão sublinhada que desempenha a mesma função sintática do pronome LHE, sublinhado no verso do enunciado.