TEXTO
PEQUENAS E GRANDES ESCOLHAS
Certa vez, Freud declarou que haveria menos chance de erro nas grandes escolhas feitas por impulso.
A sugestão parece imprudente, mas ele sabia que as razões que mais pesam nas grandes escolhas
da vida são inconscientes, e o impulso obedece a essas razões. No caso das escolhas profissionais, as
motivações inconscientes são decisivas. Elas determinam não só a escolha mais “acertada”, do ponto de
[5] vista da compatibilidade com a profissão, como são também responsáveis, pelo menos em parte, por
aquilo que chamamos de talento.
Tudo isso se decide na infância, por mecanismos que chamamos de identificações. Toda criança que
começa a desgrudar da primeira relação intensa com seus pais leva na bagagem de sua pequena
independência alguns traços da personalidade deles. A identificação é esse “resto de saudades”
[10] que acompanha cada separação amorosa: “já que não posso ter essa pessoa por inteiro, carrego um
pouquinho dela dentro de mim”. Apesar de parecer um processo de imitação, não é: os caminhos das
identificações acompanham muito mais os desejos não realizados dos pais do que aqueles que eles
seguiram na vida. Assim acontece que uma criança possa revelar grande interesse por uma profissão
com que o avô sonhou, mas nunca exerceu. Ou um talento que a mãe não levou adiante ressurge com
[15] toda a força em um dos filhos. Não são os genes que transmitem essas vocações – pelo menos, não só.
É o “faro” da criança para detectar os objetos, explícitos ou recalcados, do desejo dos pais.
Junto com as identificações formam-se os ideais. A escolha profissional tem muito a ver com o campo
de ideais que a pessoa valoriza. Dificilmente alguém consegue se entregar profissionalmente a uma
prática que não represente, ao menos indiretamente, os valores em que ela acredita. Tudo isso tem
[20] a ver, é claro, com a almejada satisfação na vida profissional. Mas não vamos nos iludir. Satisfação no
trabalho não significa necessariamente prazer em trabalhar. O trabalho não é fonte de prazer: é fonte de
sentido. Ele nos ajuda a dar sentido à vida. Só que o sentido da vida profissional não vem prêt-à-porter1.
Ele é o efeito, e não a premissa, dos anos de prática de uma profissão.
Em uma conjuntura em que se acredita em prazeres instantâneos, resultados imediatos e felicidade
[25] delivery2, é bom lembrar que a construção de sentido requer tempo e persistência.
MARIA RITA KELH Adaptado de http://rae.fgv.br/sites/rae.fgv.br/files/artigos/5108.pdf, 11/04/2018.
1 pronta para vestir
2 entregue em domicílio
Elas determinam não só a escolha mais “acertada”, (l. 4)
Nesse trecho, por meio das aspas, a autora expressa o seguinte valor em relação à escolha da palavra sublinhada: