TEXTO – Justiça para enfrentar os tubarões do clima
O clima não está para peixe: o tema das mudanças climáticas invadiu a praia dos debates públicos, da mídia e também da Saúde Pública. O assunto é quente, literalmente: nos últimos 250 anos de industrialização e capitalismo houve um aumento importante dos chamados gases de efeito estufa que podem provocar aquecimento global. A ideia do efeito estufa é que certos gases presentes na atmosfera refletem de volta as ondas de calor irradiadas pela superfície terrestre, mantendo uma faixa de temperatura que facilita a existência da vida no planeta. Porém, em excesso, esses gases provocam aumento da temperatura acima do normal. A concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera aumentou em torno de 35% entre 1750 e 2006 — 82% por conta da queima dos combustíveis fósseis (basicamente petróleo e carvão) e 18% do desmatamento de florestas tropicais.
As consequências das mudanças climáticas são globais e não se restringem apenas a uma elevação incerta de alguns graus (entre 1,5 a 6) na temperatura média do planeta. Ninguém pode afirmar com exatidão o que acontecerá, onde e quando, mas vários cenários trágicos estão previstos: elevação do nível do mar, intensificação dos desastres ligados ao clima, como furacões, enchentes e secas, além de mudanças radicais em vários ecossistemas, com inúmeras repercussões sobre a Saúde Pública. No Brasil, o pesquisador José Marengo, em estudo patrocinado pelo Ministério do Meio Ambiente, prevê que a Amazônia pode virar um enorme cerrado, o semiárido nordestino pode se expandir, as chuvas intensas vão criar problemas em várias cidades do país e a biodiversidade pode ser seriamente afetada. Parece que a tragédia já começou e não há como impedir seus efeitos. Contudo, há como diminuirmos as consequências mais desastrosas, se conseguirmos reduzir de forma radical a emissão de gases de efeito estufa.
Se as tragédias são muitas, há consenso no meio científico e político sobre elas e existem soluções para não usar mais combustíveis fósseis nem desmatar, por que não fazemos o que deve ser feito e, ao contrário, continuamos caminhando a passos largos para a tragédia? Porque existem poderosos interesses econômicos por detrás do problema. O modelo de produção e consumo do capitalismo globalizado em curso é obcecado pelo crescimento econômico e pela busca incessante de lucro; tudo é potencialmente motivo de cobiça para o mercado, a natureza se tornou uma grande fonte de recursos. Ainda por cima há uma forte tendência de concentração de poder, que divide os benefícios entre poucos e os prejuízos entre muitos.
Alguns podem dizer que essa posição é radical e polêmica. A ONU e os governos de vários países vêm assumindo compromissos em torno do problema climático há muito tempo. A Convenção Marco sobre Mudanças Climáticas, que entrou em vigor em 1994, promove desde então várias conferências entre as partes (COPs), que culminaram com a criação do Protocolo de Kyoto, em 1997. Em todas as COPs acontecem encontros paralelos, com a ampla participação de organizações da sociedade civil. Nesses espaços foi cunhada a expressão “justiça climática”, conceito que articula a crise climática com a justiça social e ambiental. Ele sustenta que as consequências das alterações climáticas são e serão desiguais, afetando mais as populações e territórios mais vulneráveis; e que os países ditos mais industrializados e desenvolvidos foram os que mais contribuíram para o efeito estufa nos últimos dois séculos, sendo mais responsáveis para financiar medidas mitigadoras e processos de transição para sociedades mais sustentáveis. É por isso que se fala em “dívida climática”.
Meu trabalho acadêmico e militante me levou a participar do Espaço dos Povos, encontro paralelo à 17ª COP que aconteceu em dezembro de 2011 em Durban, na África do Sul. O tom da crítica sobre o fracasso da conferência oficial era unânime: o atual período será conhecido no futuro como a década perdida da luta contra as mudanças climáticas. Dentre as críticas, destacam-se a falta de compromissos claros, a ausência de importantes países (Estados Unidos, Canadá, Japão, Rússia, Austrália e Nova Zelândia) e a fragilidade dos instrumentos de mercado adotados pela economia verde, que vem orientando acordos voluntários, os mercados de carbono e a redução de emissões por desmatamento e degradação de florestas.
Mas o clima também é de esperança. Para Fátima Mello, do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20, a solução terá que passar, necessariamente, pelo “fortalecimento dos direitos, da reconstrução da política a partir da sociedade e da defesa da natureza como bem coletivo a serviço da humanidade e não dos mercados”. Também participei de movimentos para o enfrentamento da poluição e dos problemas de saúde provocados por refinarias de petróleo ou empresas mineradoras. Eles articulam o local ao global, com a compreensão dos condicionantes que causam os problemas e injustiças relacionadas ao clima, e com as ondas de solidariedade e mútuo aprendizado que ampliam redes de articulação política e revelam o potencial da justiça climática para a relação entre clima, saúde e cidadania. Assim, ainda que meio assustados, apreciamos a beleza dos cantos populares africanos e criamos coragem para enfrentar os vários tubarões do clima que circulam para além dos mares turbulentos de Durban.
(FIRPO, Marcelo. Justiça para enfrentar os tubarões do clima. Radis - Comunicação e Saúde- nº 114. Fevereiro de 2012)
Sobre o fragmento “O clima não está para peixe”, é correto afirmar que: